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STF: guardião ou carrasco da Constituição?

STF: guardião ou carrasco da Constituição?

Por Gustavo Badaró e Alberto Zacharias Toron

Ao decidir que condenado deve ser preso logo após júri popular, Suprema Corte transformou TJs em mecanismos de realização punitiva antigarantista

Pedro foi julgado pelo júri e condenado pela prática de um homicídio sem qualquer qualificadora ou agravante. Era primário e não tinha nenhuma passagem pela polícia, mas o juiz, embora pudesse aplicar a pena mínima de seis anos de reclusão em regime inicial semiaberto, preferiu, por pura idiossincrasia, aplicar-lhe a pena de nove anos em regime fechado e, autorizado pela nova interpretação do Supremo Tribunal Federal, mandou-o imediatamente para a penitenciária para iniciar o cumprimento da pena.

Um ano depois, o Tribunal de Justiça julgou sua apelação e diminuiu a pena aplicada para seis anos em regime semiaberto. Sim, ele ficou um ano preso num estabelecimento de rigor máximo, correndo risco de vida por não ser faccionado e comendo diariamente o pão que o diabo amassou —tudo por conta da errada fixação da pena feita pelo juiz, e não pelos jurados, mas revista pelo tribunal de apelação. A decisão do tribunal em nada interferiu na soberania do conselho de sentença, mas o cumprimento da pena desde o momento da condenação, ainda suscetível de modificação, além de desastroso para o acusado, violou a garantia básica da presunção de inocência que deveria beneficiar a todos os acusados, sem exceção.

Pior ainda foi o caso de José, sujeito malquisto na pequena cidade do interior que, em legitima defesa, matou seu agressor, homem de posses e grande benemérito. O tribunal popular, sem dó nem piedade, condenou-o à pena de homicídio qualificado pela surpresa. O juiz fixou a pena no mínimo legal, em 12 anos, com regime inicial fechado.

Julgando a apelação um ano e meio depois, o tribunal entendeu que o julgamento do júri foi manifestamente contrário à prova dos autos e, não podendo corrigir o veredicto, mandou o réu a novo julgamento, mas desta vez ele foi absolvido. Sim, ele cumpriu pena mesmo sendo, ao final, considerado inocente. Presumiu-se sua culpa.

A soberania dos veredictos significa que cabe aos jurados dar a última palavra sobre a existência do crime e sua autoria; só isso! Mais especificamente, a soberania dos vereditos não tem qualquer relação com a decisão imediatamente eficaz, ou ter seus efeitos condicionados ao trânsito em julgado.

Não há razão lógica (e nem jurídica) para que, à diferença do que ocorre em outros processos, se deva presumir a culpa logo após a condenação em primeiro grau, ainda que emanada do júri. Aliás, se o plenário do STF, ao julgar em 2019 as ações diretas de constitucionalidade 43, 44 e 54, reconheceu, “com eficácia geral e efeito vinculante, a plena legitimidade constitucional do art. 283 do CPP”, “tornando inadmissível, em consequência, por absolutamente inconstitucional, a figura anômala (e esdrúxula) da execução provisória de condenações penais recorríveis proferidas ou confirmadas por tribunais de segundo grau” (HC 174.759, Celso de Mello), soa estranho que tenha decidido o oposto agora.

O Supremo transformou o Tribunal do Júri, que está elencado na Constituição entre as garantias e direitos individuais —e não no capítulo do Poder Judiciário— no mecanismo de realização punitiva mais antigarantista de todo o ordenamento jurídico brasileiro. De guardião, transformou-se em carrasco da Constituição.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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