De acordo com a 4ª turma, o procurador utilizou-se de expressões e qualificações desabonadoras da honra e da imagem e não técnicas.
A 4ª turma do STJ determinou que Deltan Dallagnol indenize o ex-presidente Lula em razão de imputações realizadas pelo então procurador da República em entrevista coletiva na qual utilizou recursos de PowerPoint.
O julgamento foi 4 a 1. Para a maioria do colegiado, com pretexto de informar denúncia, o procurador utilizou-se de expressões e qualificações desabonadoras da honra e da imagem e não técnicas. Os ministros fixaram a condenação em R$ 75 mil mais correção monetária e juros.
Luiz Inácio Lula da Silva recorre de decisão do TJ/SP que afastou a reparação por danos morais, no valor de R$ 1 milhão, pretendida em ação indenizatória ajuizada pelo ex-presidente contra Deltan Dallagnol, em razão de imputações realizadas pelo então procurador da República em entrevista coletiva na qual utilizou recursos de PowerPoint.
A defesa alega que houve antecipação de juízo de valor sobre investigação em curso no STF, atribuindo-lhe fatos que não constavam da denúncia, no âmbito da operação Lava Jato.
Sustentação oral
Em sustentação oral, o advogado de defesa de Lula, Cristiano Zanin, da banca Teixeira Zanin Martins Advogados, ressaltou que o ex-procurador utilizou de recurso digital e de gráficos e setas indicando Lula ora como comandante, ora como maestro de uma organização criminosa.
O advogado salientou que as instâncias anteriores entenderam que o procurador teria agido no exercício de suas funções, no entanto, para ele, o entendimento afronta os arts. 12, 17, 20, 186, 187, 927 do CC, porque “não se pode admitir que um membro do MP possa, extrapolando suas funções, realizar uma coletiva de imprensa, no dia que está fazendo uma acusação, para emitir juízo de culpa contra aquele que está sendo acusado”.
“Não existia na época sequer processo. Aliás, o PowerPoint trata de crime do crime de organização criminosa, que sequer era discutido na denúncia que foi apresentada naquela oportunidade.”
Os advogados Márcio e Renata, que representam Deltan, alegaram em sustentação oral que as alegações não mereciam ser acolhidas, porque a avaliação, tanto da suficiência dos elementos probatórios, quanto da necessidade de produção de outras provas, demandaria a incursão em aspectos fáticos-probatórios dos autos, inviável pela Súmula 7.
Servidor público – Exercício das funções
Ao decidir, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, salientou que quando o agente público pratica ato em vocação para se configurar um ilícito civil, sua condição de agente de estado perde a relevância, ainda que para a prática da conduta ilícita aquele sujeito tenha, inicialmente, se utilizado de sua condição pública.
“Conforme compreendido pelo Supremo, a pretensão ressarcitória que, forçosamente, coloca o Estado no polo passivo da ação, é aquele cujo ato danoso coincide com a atribuição funcional do agente.”
Em outras palavras, o ministro explicou que, se o servidor, no exercício de suas funções, provocar dano ao particular, o ordenamento legitima o prejudicado a buscar a reparação em face do Estado, que em regresso poderá responsabilizar seu agente a caso se comprove que agiu com culpa.
Ao reverso, ressaltou o ministro, se por sua conta e risco, ultrapassa os limites de suas funções, e atuando no campo do Direito Privado, cause dano a outrem, responde por seus atos civil e diretamente ao ofendido.
Agir midiático
Salomão destacou que a controvérsia consiste em verificar se houve o agir midiático e abuso na divulgação da denúncia capaz de causar dano moral a Lula e, em nenhuma hipótese, o questionamento a respeito da denúncia em si ou os tipos penais que ela faz parte.
“Parece indispensável à solução do caso que seja examinado o alegado excesso, do ponto de vista exclusivamente técnico, a configuração do excesso no direito de informar o oferecimento da denúncia criminal a partir dos parâmetros traçados pela responsabilidade extracontratual.”
Limites
Após citar alguns estudos, o ministro destacou que “sempre que os limites socialmente aceitos forem ultrapassados, dando lugar a situações geradoras de perplexidade, espanto ou revolta, decorrentes do exercício de direito, a resposta do ornamento só pode ser uma: a repulsa ao agir abusado desarrazoável“.
No caso dos autos, Salomão verificou que na entrevista e na forma como foi conduzida – em virtude da realização da coletiva de imprensa transmitida em rede nacional, cujo pretexto seria informar denúncia – o procurador utilizou-se de expressões e qualificações desabonadoras da honra, da imagem e não técnicas.
“É incontroverso que valeu-se de um PowerPoint em que a imagem projetada compunha-se por diversos círculos, que por sua vez eram identificados por palavras. As palavras afastavam-se da nomenclatura típica do Direito Penal e Processual Penal. Exemplo: ‘Reação de Lula – Petrolão’, ‘Propinocracia – Governabilidade corrompida’, “‘Vértice Comum’, ‘Maior beneficiado’, ‘Expressividade’.”
Para o relator, a entrevista foi “inquestionavelmente desprovida de tecnicidade” e ressaltou que o próprio procurador reconheceu a infelicidade da coletiva em várias entrevistas que concedeu posteriormente.
“Não há espaço para dúvida de que todos os agentes envolvidos devem cuidar para que o procedimento não se desvie de fundamentos éticos. Todo processo, iniciando-se pelo oferecimento da denúncia, deve ementar-se pelo principio da dignidade da pessoa humana.”
É imprescindível para a eficiente custódia dos direitos fundamentais que a divulgação do oferecimento de denúncia criminal se faça de forma precisa, coerente e fundamentada, assim como a peça acusatória deve ser um espelho das investigações, destacou o ministro.
“Sua divulgação deve ser um espelho de seu estrito teor, balizada pelos fatos que a acusação imputou, sob pena de não apenas vilipendiar-se direitos subjetivos mas também desacreditar a todo sistema jurídico.”
Abuso do direito
Segundo Salomão, revela-se inadequada a conduta do procurador, evidenciando abuso do direito ao caracterizar Lula como “comandante máximo do esquema de corrupção” e “maestro da organização criminosa”, assim como ao anunciar a imputação de fatos que não constavam no objeto da denúncia.
“Portanto, se na peça de acusação não foram incluídas adjetivações atécnicas, evidente que a sua anunciação também deveria resguardar-se daquelas qualificadoras, que enviesam a notícia e a afasta da impessoalidade necessária, tirando o tom informativo e a coloca como narrativa do narrador.”
Votos
Os ministros Raul Araújo, Antônio Carlos Ferreira e Marco Buzzi seguiram o relator na fundamentação.
Ministra Isabel Gallotti divergiu por considerar que a matéria seria de ordem pública e, ainda, a ilegitimidade passiva. Para a ministra, é indiscutível que o procurador agiu no exercício de suas funções.
“Na época em que foram praticados os fatos havia uma recomendação do MP para que os procuradores prestassem contas à população de suas atividades. Havia portaria do procurador-Geral da República regulamentando essa prática. O manual de recomendação dos procuradores afirmava que as entrevistas deveriam ser concedidas quando havia muitos pedidos e para todos os meios de informação.”
Assim, a ministra considerou que a ação deve ser extinta sem exame do mérito.
Valor da condenação
No mérito, quanto ao dano moral, o ministro Salomão fixou o valor em R$ 100 mil, com juros de mora a contar do efeito danoso, que ocorreu em 2016. O ministro calculou que o valor acumularia R$ 170 mil, ou seja, 500 salários-mínimos. Raul Araújo propôs que a indenização seja de R$ 50 mil, mais correção monetária e juros.
Ao discutirem, chegaram à conclusão de R$ 75 mil, mais correção monetária e juros.
- Processo: REsp 1.842.613
Publicado originalmente no Migalhas.
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