“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.”,
Mário Quintana.
Há algum tempo, tenho escrito sobre o trabalho cuidadoso e deliberado do governo Bolsonaro em desestruturar as instituições brasileiras. O que parece, muitas vezes, uma desídia, quando analisado detidamente, demonstra ser uma estratégia de enfraquecimento das conquistas democráticas acumuladas ao longo de séculos de história. E é muito difícil lidar com quem não tem nenhum limite no trato com os direitos e garantias constitucionais e individuais.
Desde as eleições, quando o grupo que assumiu o governo federal resolveu usar mentiras, ataques pessoais e baixarias cruéis, nós deveríamos ter entendido que eles não mediriam esforços para alcançar o que pretendiam. E nem para se manterem no poder. A frase do coronel Jarbas Passarinho, ao assinar o AI-5, “Às favas todos os escrúpulos de consciência”, parece ter virado um lema para o atual governo.
Mas, mesmo para quem está se acostumando com as criaturas bizarras que saem diretamente do esgoto que se transformou o governo do Brasil, está sendo difícil conviver com o modo com que estão tratando a questão da tortura durante o golpe cruel e assassino que se abateu sobre o país após 64.
Percebe-se um grau de cinismo e desprezo pela dignidade da pessoa que, penso, só vem à tona de maneira assumida por acreditarem esses bárbaros que o trabalho de desestruturar as instituições já lhes permite fazer, a céu aberto, todo tipo de sandices.
Quando o Presidente da República exalta o sofrimento e homenageia o torturador, ele dá um sinal para os monstros teratológicos saírem das trevas e assumirem suas faces verdadeiras a olho nu.
O episódio da revelação dos áudios das sessões do Superior Tribunal Militar é de uma gravidade inaudita. Todos nós conhecemos o Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pelo magnífico Dom Paulo Evaristo Arns que, em 1985, em um ato de grande coragem e desprendimento do nosso inesquecível Sigmaringa Seixas, dentre outros, apresentou provas incontestáveis, baseadas em autos da Justiça Militar, de inúmeros casos de tortura.
Esse grupo pesquisou, clandestinamente, no período de 1979 a 1985, centenas de processos judiciais e, correndo o risco da própria vida, produziu importante documentação sobre os anos de chumbo da ditadura. Os processos eram retirados dos cartórios por advogados, verdadeiros heróis, que cuidavam de tirar cópias escondidas para fotografar a história das barbáries. A história da ditadura. A história do Brasil.
Foram analisadas mais de 850 mil páginas de processos e o trabalho resultou no livro de não ficção mais vendido do país. Não havia como o Estado refutar, pois eram documentos produzidos pelo próprio Estado: foram mais de 20 mil brasileiros torturados naquele período.
Quando pensávamos que nada poderia ser mais cruel do que o Presidente da República defender a tortura, eis que o horror é jogado friamente nas nossas caras. Agora, com vozes cavernosas e macabras, através dos registros também obtidos oficialmente dos julgamentos do mesmo Superior Tribunal Militar.
Deu asco, vergonha e nojo de ver o Presidente do Tribunal, um general do Exército, ironizar as dramáticas gravações e dizer que elas “não estragaram a Páscoa de ninguém.” E ainda ousou afirmar que eram “notícias tendenciosas” para atingir as Forças Armadas. Ora, o que atinge as Forças Armadas é o silêncio sobre as torturas. É a cumplicidade.
Sobre os mesmos fatos, o General Vice-Presidente da República tripudiou com o sentimento das famílias e de quem tem dignidade e humanidade ao afirmar, gozando: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”
No mesmo dia, um ex-integrante do Exército, que serviu na Brigada Paraquedista, resolveu contar detalhes dos flagelos impingidos a um jovem casal, morto em 8 de dezembro de 1968, após a “menina ter tomado choque na vagina, no ânus, na boca, nos lábios”. Covardes. Bandidos. Algozes que envergonham a humanidade.
A banalização da violência, o culto à tortura, o desprezo à vida e ao Estado democrático de direito são um alerta para todos nós. As próximas eleições podem ser as mais importantes da história do Brasil, até porque podem ser as últimas. Nenhum povo aguenta viver sob o jugo da barbárie.
Vamos fazer dessas nossas dores e dos nossos horrores uma força para tirarmos a venda da tirania e as amarras do nosso imobilismo e enfrentar os vermes que vivem do submundo. Como ensinou Clarice Lispector, “Atitude é uma pequena coisa que faz uma grande diferença.”.
Artigo publicado originalmente no Último Segundo.
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