O bom juiz é aquele que não se intromete em trabalho que não seja o dele. Não o que se dobra a apelos espúrios nem o que presume a culpa
A Folha publicou no domingo (24) um artigo sob o título “Não é dos astros a culpa”, de autoria do juiz federal Sergio Fernando Moro, texto que motivou esta reflexão.
As prisões cautelares, a despeito da lei nº 12.403/2011, vêm aumentando de modo assustador e hoje 41% dos detidos estão encarcerados sem condenação definitiva. Desmedidamente usada, a prisão cautelar funciona como verdadeiro justiçamento que pune antes da sentença final, negando os fundamentos da lei que a justificam. É pena antecipada que se transforma, isto sim, em “método de investigação”.
Na prática, o que se constata durante a fase de apurações, na prevalência da regra do claustro, é a aplicação de normas fecundadas numa espécie de “código de carcereiro”. A sua aplicação, à margem de um controle possível e eficaz, leva o acusado a renunciar ao seu direito de defesa, abandonando a perspectiva de obter, no mínimo, o denominado “fair trial” (julgamento justo, em inglês).
Alguns magistrados têm permitido, por omissão ou por recôndito desejo antecipado de punir, que presos provisórios sejam submetidos a tratamento desumano, cruel e degradante, sob a égide destes “códigos de carcereiros” promulgados no silêncio vencido apenas pelo som das portas que se fecham para o preso, sua defesa e sua família.
Nos dias atuais, está cada vez mais difícil distinguir quem julga de quem acusa, tal a simbiose da visão teleológica, quase gêmea, que possuem. Subverte-se a lei processual e seus fundamentos: o promotor que promove o libelo, o advogado que defende, o juiz que julga.
A postura de isenção do servidor público investido na função de juiz não pode ser maculada por seu desejo de perseguição, ainda que sinta repugnância pelo crime objeto de apuração, qualquer que seja ele. Ao aceitar o exercício do cargo, deve estar medicado para impedir-se de idiossincrasias. Além do mais, deve contas ao jurisdicionado tanto quanto deve ao Estado, não podendo, por lhe ser proibido, privilegiar um em detrimento do outro.
A magistratura, o Ministério Público e a advocacia serão tão melhores quanto maior for a vocação de seus agentes. A visão equidistante do juiz, como exigência do Estado de Direito, tem que ser induvidosa tanto para quem acusa como para quem defende. Deus nos livre dos “parti pris”, das tendências e das ideologias vestidas com a toga dos magistrados.
O bom juiz é o que não se intromete em trabalho que não seja o dele. O que respeita o Ministério Público, o advogado, o jurista e o legislador. O que abjura a onipotência. O que ouve. O que pondera. O que não se precipita. O que sente fotofobia sob as luzes da mídia. Este é o juiz que o Estado de Direito exige. Não o que se faz de conviva de pedra perante a execução do “código dos carcereiros” mantendo a imagem impoluta do homem de terno nos gabinetes. Não o que se dobra a apelos punitivos espúrios. Não o que presume a culpa. Não o que deseja fazer justiça a qualquer preço.
Urge que alguns de nossos magistrados tenham uma compreensão mais aprofundada dos princípios que garantem a dignidade humana, lendo com olhos mais atentos a Constituição e os pactos internacionais de que o Brasil ainda é signatário.
Podem se dedicar a essa tarefa passo a passo. Quem sabe de dentro para fora, numa avaliação sincera e superior não só do que são e do que têm sido como cidadãos, mas também de suas próprias decisões. A começar por reaprender que o crime é –e será sempre– um fato humano. A não ser que prefiram começar a julgar galinhas.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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