A expectativa de uma primeira eleição em que a Lei Federal 14.192/21 – que trata da violência política de gênero – começará a ser aplicada traz um misto de ansiedade e esperança, com temor.
Embora os números de vítimas neste recorte sempre tenham sido alarmantes, o Brasil demorou para ter sua primeira legislação específica sobre a matéria, ficando atrás de países como México, Peru e Bolívia. Um atraso que nos trouxe à gravíssima situação em que nos encontramos hoje.
Dados do instituto MonitorA (InternetLab + AzMina), do Instituto Marielle Franco e da plataforma de denúncias TRETAqui.org demonstram que nas últimas eleições (2020) as candidaturas femininas, as candidaturas raciais e LGBT+ continuavam na liderança como alvo preferido entre os agressores praticantes destas violências. Que por sua vez se consubstanciavam em silenciamentos, ameaças, xingamentos e até mesmo agressões físicas.
Este cenário que num primeiro momento pode nos remeter à corrida eleitoral, claramente se perpetua dentre as candidaturas eleitas, e na ocupação destes espaços de poder que se colocam neste recorte, tido como “minoritário”.
A média de 40 xingamentos por dia nos perfis femininos na disputa eleitoreira, se soma à pouca representatividade nos espaços de poder. E se mantém na inviabilização de mulheres nas mesas de tomadas de decisão
Mulheres que disputaram eleições pretéritas sentiram na pele a atrocidade da violência política, e por esse motivo tiveram claramente maiores obstáculos na disputa eleitoral, minadas que foram pelos recorrentes atos de ataques verbais, emocionais, misóginos e transfóbicos praticados por aqueles que tentam manter o status quo de um grupo antidemocrático dominante, e que não só as prejudicou, como contribuiu para o grave desequilíbrio no pleito.
Independentemente de afinidade ideológica ou partidária, o alvo sempre teve um gênero bastante específico.
Não fossem suficientes as agressões verbais, a chuva de fake news injuriosas, indecorosas e caluniosas, praticadas comumente contra todas mulheres que se posicionam e fazem a disputa política, chegamos ainda ao lamentável episódio em que uma parlamentar sofreu evidente importunação sexual dentro de sua própria Casa Legislativa.
O fato é que a violência declarada é fácil de identificar, mas a subliminar também é cruel. Não custa lembrar que até no Senado Federal, até o ano de 2016 nossas senadoras não possuíam banheiro feminino no plenário e em tempos muitíssimo recentes simplesmente não integraram a mais importante CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos últimos anos, a da COVID 19, que tantos descalabros desvendou, com riqueza de documentos e depoimentos, a respeito da conduta do governo federal no enfrentamento da pandemia.
As que, a despeito da ausência de participação efetiva e cativa, estiveram entre as mais aguerridas, combativas e incisivas questionadoras dos que depuseram na CPI, foi porque tiveram coragem, paciência, perseverança, resiliência e dedicação, mesmo sob a alcunha de “descontroladas” para agregarem-se aos trabalhos, apesar de nem como suplentes terem sido nomeadas.
Os dramas vivenciados por estas que participam da política, mesmo chocantes e assustadores, no hostil ambiente político enfrentado pelas mulheres no Brasil, representam apenas pequenos recortes de um cotidiano permeado pela violência política de gênero, manifestada em condutas e práticas rotineiras, em muitas casas legislativas. E, antes disso, em muitas siglas partidárias.
A notícia esperançosa para a sociedade e péssima para os agressores é que agora, a nova lei que cito no início deste artigo estabelece regras para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, tanto nos espaços políticos quanto nas funções públicas.
Mais do que isso, em seu artigo 2º, o texto garante a efetiva participação feminina na política, sendo vedada a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.
Se antes desde os diretórios partidários de inúmeras localidades e em diferentes esferas, as mulheres eram frequentemente desestimuladas – ou mesmo impedidas – de ocupar posições de destaque e ter poder de decisão, e se atualmente temos poucas mulheres nas presidências das comissões temáticas das casas legislativas, talvez este já seja um ponto de reflexão sugestivo de violência política de gênero já com base na nova lei.
O mesmo se dá com reiteradas interrupções em seus discursos e com seus projetos de lei com tramitação propositalmente truncada ou mesmo reprovados, sem embasamento legal – especialmente aqueles que tratam de direitos das mulheres.
Num ano eleitoral, sob a égide da aplicação da lei pelo exposto aqui e por tudo o que acontece diariamente na política nacional, o prognóstico precisa ser positivo e a interpretação legal deve ser intrinsicamente atrelada aos fins por ela pretendidos.
Cabe às autoridades constituídas, às lideranças dentro e fora da política, verdadeiramente comprometidas com a igualdade de gêneros e raça, e também às Instituições e sociedade, redobrarmos a vigilância e a coragem para prevenir, denunciar e erradicar toda e qualquer forma de violência política de gênero.
Desde a fase de formação de chapas e escolha de candidaturas, passando pela estruturação, financiamento e execução das campanhas. E, depois, estendendo-se ao exercício dos mandatos femininos e raciais, imprescindíveis que são para uma política igualitária, justa e que de fato represente todos os brasileiros e brasileiras em uma verdadeira democracia, plural, diversa e fraterna, privilegiando-se a regularidade e equilíbrio do pleito.
Os casos de violência política de gênero não vitima apenas a mulher, mas especialmente a própria democracia.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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