Continuamos moendo miseráveis e prendendo mães que vivem na rua e furtam para alimentar os filhos.
Uma mulher grávida, mãe de três crianças que vivem com ela em situação de rua, foi presa em flagrante no sábado passado. Foi acusada de tentar furtar comida em uma das várias Lojas Americanas de Salvador. Em quinze anos de trabalho na Defensoria Pública, vi inúmeros casos como esse. Nunca vi uma acusação de corrupção. Essa é a realidade do processo penal: uma máquina de moer pobres.
Pensar o Direito Penal a partir da lógica de guerra (não importa se à corrupção, às drogas ou qualquer outra coisa) impulsiona a moenda de pobres. Resumir os problemas do sistema de justiça ao lugar comum e muitas vezes falso da “impunidade” o consolida como moedor de pobres. Pensar um projeto do país a partir do punitivismo extermina toda a democracia.
Em 2022, o Brasil terá eleições presidenciais. Infelizmente, a pré-candidatura de um ex-juiz, Sérgio Moro, em vez de melhorar, piorou o já limitado debate sobre o sistema de justiça. O ex-magistrado tem revelado profundo elitismo, desconhecimento da realidade e falta de apego aos princípios civilizatórios básicos. Como fez da sua atuação judicial o tema central da sua campanha, tem puxado os concorrentes para o mesmo deserto de ideias úteis.
Para visualizar como esta forma de pensar se volta contra os suspeitos de sempre, não precisamos buscar os erros jurídicos da operação Lava-Jato (que hoje Moro confessa ter comandado). Basta ver o que dizem os projetos de lei defendidos pelo candidato nos últimos anos. Começando pelas “10 medidas” que nem de longe teriam como principais afetados os julgamentos sobre corrupção. O projeto apoiado por ele atacava violentamente o direito de habeas corpus, dando orgulho aos arquitetos do AI-5. O que dizer então da permissão do uso de “prova ilícita obtida de boa-fé” por acusadores ou investigadores? Quem seriam os milhares de presos e condenados, com provas ilícitas e sem habeas corpus se não os pobres?
Podemos lembrar também do malfadado “pacote anticrime”, que tentou criar uma esdrúxula autorização para que a polícia fosse mais violenta e letal nas favelas, mal conhecida como “excludente de ilicitude”. O recorte de classe estava expresso na própria justificativa do projeto assinado pelo agora candidato que dizia: “O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes. Por tais motivos, é preciso dar-lhe proteção legal, a fim de que não tenhamos uma legião de intimidados pelo receio e dificuldades de submeter-se a julgamento em Juízo ou no Tribunal do Júri “. É documento oficial. O alvo, literalmente, estava escancarado. O ex-ministro de Bolsonaro queria que os policiais estivesse mais tranquilos para atirar em pessoas nas favelas.
Há inúmeros outros exemplos, como a defesa de institutos para ampliar as prisões preventivas e mitigar a presunção de inocência, a mistura entre a atividade de julgar e acusar, como ocorria na inquisição, ou a confusão dos conceitos de justiça e condenação. Puxados pelo ex-juiz, os candidatos debatem o direito penal do século XIII, mas nenhum deles fala sobre o maior problema do sistema de justiça: a indiferença ou a perseguição aos pobres.
Enquanto damos ouvidos a essas pataquadas escondidas sob chavões como “corrupção”,”lava-jato”, “impunidade” e “força-tarefa”, não discutimos que pessoas consideram normal a existência de municípios sem Defensoria Pública implantada. Não discutimos que a Defensoria Pública da União tenha um orçamento menor que a Justiça Militar. Não discutimos que a justiça é hostil à cultura, á linguagem, à vestimenta e aos problemas de quem não tem dinheiro.
Não discutimos o que fazer com um sistema prisional super lotado e reconhecido formalmente como contrário à constituição. Não discutimos como parar de pensar segurança pública a partir de encarceramento. Não discutimos as dificuldades reais de quem não tem recursos quando se fala em direito de família, direito civil, acesso à saúde, à educação, etc. Continuamos reféns de manobras dispersivas. Continuamos moendo miseráveis e prendendo mães que vivem na rua e furtam para alimentar os filhos. Que os demais candidatos acordem e escapem da armadilha. Ainda dá tempo.
Artigo publicado originalmente no Migalhas.
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