Há dias escrevi o texto intitulado “Por que só passa por cima da lei contra o réu?”. Tratei de uma coisa singela, transformada em um tragic case pelo STJ. Explico: enquanto o CPC diz que cabem embargos de qualquer decisão, o STJ estabeleceu (imputou, ao melhor estilo autorictas non veritas facit legis) que das decisões que inadmitem REsp na origem são incabíveis os Embargos, com a agravante da perda do prazo para o Agravo.
Grandes juristas como José Rogério Cruz e Tucci já escreveram sobre isso (aqui) acerca do cabimento de embargos de declaração contra a decisão que nega trânsito aos recursos especial e/ou extraordinário. Ao final do artigo, Tucci declarou que não parece sustentável a tese de que a única impugnação cabível contra ato decisório negativo do trânsito do recurso especial e/ou extraordinário é o agravo.
Pois fiquei sabendo de um caso jurídico que vale aqui contar aos trinta e sete leitores da Coluna. Com efeito. Na forma da lei. Conto o caso, com a lhaneza de sempre, como amicus.
Cidadão comprou um imóvel. Firmou com o vendedor instrumento particular de compra e venda. Não fez a escritura e, por isso, não tinha registro. Pagou o imóvel. Transferência bancária.
Tudo certinho com o contrato de compra e venda. Estava no gozo da posse. Em pleno gozo.
Veio, então, penhora por dívida do “antigo proprietário”. O comprador comprara, sem saber o imóvel de um caloteiro.
O comprador, então, contratou um causídico. Esse, atento e sagaz, ajuizou Embargos de Terceiro. Invocou o claro teor da Súmula 84 do STJ, que diz:
É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.
Alguma dúvida sobre a interpretação da Súmula? Em qualquer aula de direito, dir-se-ia: encaixe total. Subsunção.
Tratando-se de um easy case, os Embargos de Terceiro foram julgados procedentes em primeiro grau. Os embargados apelaram. Só que o Tribunal do Estado deu provimento, ao argumento de que não havia registro e, portanto, propriedade. Problema: “literalmente” passaram por cima da Súmula 84. Ignoraram. Afrontaram a Súmula.
Caso de caderninho. Até em cursinho Wallita esse exemplo cairia bem.
Restou ao causídico manejar REsp. Fê-lo. Alegou o óbvio ululante: (i) divergência jurisprudencial (afinal, passaram por cima de uma Sumula do STJ) e (ii) violação à lei federal, já que os Embargos de Terceiro, segundo o CPC, servem também para proteger a posse.
No Tribunal, o estagiário fez esboço de decisão, o desembargador assinou e, pronto: foi negado seguimento ao REsp;[1] mais ainda, manifestou-se apenas sobre a violação à lei federal. O restante foi ignorado. Omitido. Isto é: a decisão que inadmitiu o REsp foi completamente omissa quanto à tese da divergência. Há um direito fundamental a uma resposta adequada ao devido processo legal, como venho sustentando há décadas.
O causídico, então, lendo o CPC, acreditou, por estar possuído de boa-fé hermenêutica, naquilo que seus olhos viam, ou seja, o que está escrito na lei, E opõe embargos de declaração. Pensou o nosso stoik mujic: “- É tão absurdo isso que darei a chance para que o Tribunal reveja o crasso erro. E que o estagiário fosse chamado às falas”. Ora, pois.
Todavia, os embargos não foram conhecidos, sob o argumento de sua inadmissibilidade na hipótese. O causídico agrava, arguindo, inclusive, a violação dos próprios dispositivos que dão direito aos Embargos (1022 e 1026 do CPC).
O Agravo não foi conhecido por intempestividade. Fazendo uma blague (me permito), o agravo não foi (re)conhecido nem por fotografia.
E então, pergunta o causídico? Fazer o quê? Só lhe resta arrancar os cabelos. O que teria ele feito de errado? Já não vale o que está escrito no CPC? Nem mesmo uma Súmula é levada em conta? Isso tudo em um país em que as Súmulas assumem lugar quase sacrossanto. São veneradas.
Numa palavra: o causídico foi derrotado mesmo tendo a seu favor uma súmula do STJ e um dispositivo do CPC. O que mais ele precisaria ter a seu favor?
O que dizer?
Sem palavras. A não ser que, no Judiciário, é possível correr sozinho e…chegar em segundo lugar.
Busca lã e volta tosquiado.
Aliás, há uma música ganhadora de festival no Rio Grande do Sul, composta por Telmo de Lima Freitas, recentemente falecido (conheci-o quando fui promotor de Justiça em Itaqui, e Telmo era agente da Polícia Federal). Relata o drama do esquilador (aquele que faz tosquia de ovelhas) com a chegada da mecanização.
Vejam (e os que desejarem, oiçam — na voz de Edson Otto e os Cantores dos 7 Povos, bem raiz). E prestemos atenção a esta parte do drama do esquilador:
Hoje perguntando para a própria vida
P’ronde foi a lida que ele conheceu
Quase um pesadelo arrepia o pelo
Do couro curtido do esquilador
Ao cambiar da sorte levou um cimbronaço
Ouvindo o compasso tocado à motor.
No Direito também levamos cimbronaços (puxões, trancos, como que quando somos surpreendidos). Os advogados perguntam:
P’ronde foi a lida que conhecemos?
[1] Essa parte do estagiário é licença poética minha.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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