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A Constituição como verdadeiro paradigma – O papel do STF frente à tese do Marco Temporal

A Constituição como verdadeiro paradigma – O papel do STF frente à tese do Marco Temporal

O debate acerca do julgamento da tese do marco temporal, como critério demarcatório para as terras indígenas, está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) que continuará seus debates nesse dia 08/09/2021, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC em favor do povo Xokleng.

Desde o início desse processo de julgamento diversos povos indígenas estão acampados em frente ao STF reivindicando a rejeição a essa tese que condiciona o direito demarcatório à comprovação da ocupação ocasional desses territórios, por parte dos povos indígenas, à data de 5 de outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição Federal.

Esse texto busca responder à seguinte pergunta: Em relação à tese do marco temporal qual deve ser o papel do STF ao tomar sua decisão.

E, neste sentido, só há uma única resposta aceitável: cabe ao STF decidir com base no disposto na Constituição Federal, pois, o STF é o guardião da Constituição Federal e qualquer interpretação de dispositivos nela previstos não pode desconstruir sua integridade e higidez.
Antes de discutir os dispositivos constitucionais específicos sobre a questão em debate, e enfrentar o argumento se a tese do marco temporal deve ser mantida em respeito ao critério de caracterização de precedente que esta teria em razão do processo Raposa da Serra do Sol, entendemos que é preciso reconhecer que a Constituição Federal de 1988 reinaugura a ordem democrática estabelecendo em seus Princípios Fundamentais que o Brasil é um Estado democrático de Direito que tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana, o pluralismo, e objetiva construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem nenhuma forma de preconceito e discriminação.

A partir dessa concepção de Estado o Título dos Direitos e Garantias Individuais trará ainda um rol extensivo de previsões de direitos a ser protegidos, e especifica que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por elas adotados, ou dos tratados internacionais de que o País faça parte, destacando que tratados e convenções de direitos humanos que forem aprovados por três quintos dos votos das Casas do Congresso em dois turnos, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Finalmente, resta deixar claro, também, que essa mesma ordem constitucional determina como cláusulas pétreas os direitos fundamentais explicitando que esses não podem sofrer emendas que tentem reduzir o seu alcance.

A retomada desses pressupostos merece ser apresentada na discussão do caso da tese do marco temporal, uma vez que é preciso que se tenha claro que não é aceitável a sustentação de nenhuma tese jurídica, em nome da defesa de qualquer escola doutrinária e/ou qualquer argumento retórico, se isso significar um entendimento ofensivo aos princípios fundamentais da ordem constitucional, pois esses princípios constituem a base normativa que corporifica a escolha política sobre o tipo de Estado que o Brasil se constituiu com a vigência da Constituição Federal de 1988. E esse reconhecimento dado aos direitos fundamentais se comprova na medida em que foram definidos como cláusulas pétreas, pelo constituinte originário.

O que se quer afirmar com isso é que qualquer interpretação acerca de direitos previstos no corpo de nossa constituição não pode desrespeitar a moldura democrática, plural e de proteção e supremacia dos direitos fundamentais, que por sua natureza estão condicionados à proibição de retrocesso, sob pena de se estar diante de uma interpretação inconstitucional.
Dito isso precisamos buscar o que a mesma Constituição previu em relação aos povos indígenas e, nessa leitura descobrimos que o artigo 231 da CF diz que: são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Ao fazermos a leitura proposta, verificamos que a norma específica sobre a questão indigenista explicita a escolha que coaduna com os princípios fundamentais da ordem constitucional brasileira, na medida em que define o direito originário dos povos indígenas às terras que tradicionalmente lhes cabe.

A compreensão de que não caberia uma interpretação de forma diversa da conclusão afirmada decorre do reconhecimento antropológico sobre a cultura indígena e suas tradições que demonstra que a relação dos povos indígenas com a terra é constitutiva de cada uma de suas diversas etnias, uma vez que a população indígena possui uma relação de sacralidade com a terra. Ou seja, vê-se o respeito ao reconhecimento de determinada etnia indígena atrelada às terras tradicionais que os caracterizam.
Nesse diapasão constitui terra indígena tradicional, como inclusive prevê o próprio art.231 §1º da CF, aquela que se demonstra imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Daí o inescapável entendimento de que o reconhecimento de um direito originário, que por definição constitui-se em um direito que independe e antecede um ato de Estado, na medida em que uma ordem constitucional assim o declara, não pode, por definição, ser condicionado a uma ocupação ocasional marcada por uma data específica, como uma decisão de caráter cogente para definição do processo demarcatório das terras indígenas das diversas etnias existentes, como tenta defender a tese do marco temporal. Se o constituinte originário ao redigir a Constituição de 1988, quisesse reconhecer aos povos indígenas apenas o direito sobre as terras que estivessem sendo ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição teria escrito isso e não reconhecido os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, como expressamente o faz o art. 231 da CF.

Vale ressaltar, ainda, que o critério do marco temporal como orientação genérica de definição de espaços demarcatórios das terras indígenas representaria a desconstituição de inúmeras demarcações já definidas administrativamente, com base no critério de ocupação tradicional de diversas etnias e impediria o reconhecimento de outros territórios que respondem à condição de direito originário de diversos povos indígenas que foram expulsos de suas terras de forma violenta e contrária aos valores democráticos que condicionam a ordem constitucional brasileira.

Diante dessa realidade e da clareza da disposição constitucional, conforme explicitado, não há como entender, portanto, que qualquer decisão na qual o STF tenha encampado a referência do marco temporal como critério útil em um específico processo demarcatório, possa ter uma ratio decidendi de alcance geral para os processos demarcatórios do País e, dessa maneira, deva, por dever à consistência e à segurança jurídica, ter força vinculante de precedente, como se espera em ordens jurídicas próprias do common law, tradição essa da qual sequer participamos.

A tese do marco temporal que foi discutida no processo de demarcação Raposa da Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal, foi uma decisão singular para esse processo. Em verdade a decisão que faz uso do marco temporal, se manifestou não como uma decisão genérica para qualquer processo demarcatório, mas como decisão específica no debate sobre demarcação contígua, que é o que se estabelecia naquela demanda. A extensão desse critério como precedente a ser seguido em qualquer processo demarcatório, é querer dar uma substância fundamentadora universalizável muito além do que caracterizou os debates enfrentados pela Corte.
Tanto isso é verdade, que quando solicitado o reconhecimento do efeito vinculante para situações futuras o STF, na votação de embargos declaratórios em 2013, decidiu pela ausência de efeito vinculante à decisão desse processo. Se reconhecesse o caráter de precedente, como critério universalizante para situações demarcatórias teria explicitado sua força vinculante. Não o fez sequer para o debate sobre as demarcações contíguas, que era sobre o que tratava o processo Raposa da Serra do Sol.

A comprovação do argumento que trago reafirma-se pelo fato do STF trazer de volta ao debate nacional a discussão sobre a demarcação de terras indígenas, no RE 1.017.365/SC, declarando agora o reconhecimento da repercussão geral. Se o critério do marco temporal trazido no julgamento Raposa da Serra do Sol tivesse o reconhecimento da força argumentativa e generalizante de seus fundamentos para casos futuros de demarcação das terras indígenas em geral, a proposição de um julgamento com o reconhecimento de repercussão geral não se colocaria. Mas como bem disse o Ministro EDSON FACHIN, ao defender esse julgamento com essas características e lançar seu voto no qual se propõe a desenvolver uma “hermenêutica constitucionalmente adequada”, isso se faz necessário dado que o tratamento jurídico das relações decorrentes das ocupações indígenas tradicionais, ainda não foi contemplado pelo STF com eficácia vinculante.
Nesse sentido, reafirmo o entendimento que já expus em debate sobre o tema: querer dizer que o STF por dever de consistência, deve assumir a tese do marco temporal como um precedente a vincular os direitos indígenas sobre suas terras e seus processos de demarcação futuros, pois foi acolhida no processo Raposa da Serra do Sol, não passa de uma pirueta retórico-hermenêutica.

A criação de outro critério que não o escolhido pela Constituição além de inconstitucional desconsidera a relação territorial étnica necessária à preservação dos povos originários. A identidade entre comunidade indígena se espelha na sua terra e a tradição é o critério de reconhecimento dessas, pois é o critério antropológico que define a etnia. O marco temporal é a estratégia de desconstrução do critério étnico que a Constituição Federal protegeu.

Assim como os povos indígenas são os guardiões das nossas florestas e da proteção de nosso bioma, o STF como guardião de nossa Constituição Federal não pode acolher a tese do marco temporal como orientadora dos processos demarcatórios das terras indígenas. A Constituição assume o conceito de povos originários e de terras indígenas tradicionais e esses conceitos não podem ser reduzidos e nem interpretados fora da moldura que caracteriza a ordem democrática e plural prevista na ordem constitucional vigente.
A Constituição compromete-se com a garantia da vida e proteção dos povos indígenas em suas diversas etnias. A tese do marco temporal desconstitui esse compromisso. A proteção desse direito precisa ser garantida pelo Supremo Tribunal Federal em sua extensão de direito fundamental e sua condição de cláusula pétrea, em respeito ao paradigma constitucional determinado em nosso processo constituinte. Como já afirmou o STF “não há índio sem terra” e como define a Constituição Federal de 1988, a demarcação do território indígena condiciona-se ao reconhecimento do direito originário da população indígena sobre suas terras de ocupação tradicional.

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