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A Portaria 2.282 do Ministério da Saúde e a infância interrompida

A Portaria 2.282 do Ministério da Saúde e a infância interrompida

Sob o impacto do calvário da menina de dez anos, do Espirito Santo, que foi estuprada, não conseguiu realizar o abortamento legal em seu Estado e foi cruelmente tratada por parcela da população e membros do Legislativo que a aguardavam na porta de um hospital de Pernambuco (Cisam), onde o procedimento foi realizado, a Folha de S. Paulo noticia no dia 30 de agosto que outra menina, de 11 anos de idade, do mesmo Estado, está passando pela mesma via crucis.

São meninas maltratadas, violentadas e que, após tanto sofrimento, são submetidas a mais mal tratos e mais violência, agora por parte do Estado, que deveria dar acolhimento e garantir a concretização de um direito que está previsto há 80 anos na legislação penal brasileira, que fixa desde 1940 duas hipóteses de aborto legal: em caso de risco de morte materna e da gravidez decorrente de estupro (artigo 128 do Código Penal, de 1940), adicionada a terceira hipótese, em caso de anencefalia, pelo STF, no julgamento da ADPF 54/2012.

Sabemos que essa deplorável realidade das meninas se repete diariamente pelo país, como mostra o Dossiê Violência Sexual, do Instituto Patrícia Galvão, de 2019, que aponta uma média de 180 estupros registrados por dia; quatro meninas de até 13 anos estupradas por hora, com estimativa de notificação de 10% desses crimes. Ainda, em 2018, conforme o DataSUS, 21 mil meninas de dez a 14 anos, vítimas de violência sexual, realizaram parto. Em todo o Brasil temos apenas 65 serviços para aborto legal. Somente de 7% a 15% das mulheres têm acesso ao aborto previsto em lei. Pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), de 2016, indica que são realizados mais de 500 mil abortos por ano, sendo que 67% das mulheres têm filhos e 88% declaram ter religião.

Pois bem, nesse cenário que causou imensa comoção social foi editada a Portaria 2282 do Ministério da Saúde, publicada no dia 28 de agosto, que dispõe sobre o “Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”, que reproduz boa parte da Portaria nº 1.508 GM/MS/2005 e introduz mudanças que consubstanciam inconstitucionalidades, com consequências diretas para a saúde de vítimas de violência sexual.

Vou me ater apenas a um dos aspectos da portaria, a questão do sigilo médico, que é matéria de ordem pública em razão do impacto na realização dos fundamentos, princípios e objetivos da República brasileira como: dignidade humana, prevalência dos direitos humanos e promoção da igualdade, além de estar albergado por diversos direitos fundamentais, como a proteção da intimidade e saúde.

Pois bem, no artigo primeiro da portaria estipulou-se a obrigação de notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação de estupro.

Esses fatos me fizeram lembrar de muitos processos que julguei ao longo de 30 anos na magistratura, mais especificamente um em que fui relatora, em 8 de março de 2018, exato no ano anterior à minha aposentadoria do TJ-SP, quando foi concedido o Habeas Corpus para determinar o trancamento da ação penal, que teve como foco central a ilicitude da prova, vez que houve rompimento do sigilo médico.

Tratava-se de paciente de 21 anos que teria praticado aborto, e a notícia do fato chegou ao conhecimento da polícia por encaminhamento realizado pela médica que a atendeu.

A 15ª Câmara decidiu que a prova que deu causa à persecução penal era ilícita, na medida em que originária de informações que deveriam ser resguardadas pela proteção de sigilo, advindas de profissional médico, o que viola a proteção legal ofertada a esfera de segredo da relação profissional-paciente e, comprovado o nexo de causalidade entre a prova ilícita originária e a prova derivada, a justa causa não se fazia presente. Tudo analisado à luz do artigo 229, inciso I, do Código Civil, dos artigos 347, inciso II, e 406, inciso II, do Código de Processo Civil, do artigo 154 do Código Penal e do artigo 207 do Código de Processo Penal, além do Código de Ética Médica (Resolução 1931 de 17 de setembro de 2009, do Conselho Federal de Medicina), sob a proteção constitucional do direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal) e da garantia da saúde e da vida, como bem fundamental.

Registrei no meu voto que tanto médicos como outros profissionais vinculados à informação confidencial de saúde têm o dever ético e jurídico de guardar o segredo que têm acesso em razão da relação confiança estabelecida e ínsita na relação médico-paciente. A norma se aplica, evidentemente, a todos os que estão de algum modo vinculados com a atividade médica, inclusive administrativos, que têm contato com o segredo. A lei penal não faz qualquer distinção. Assim, enfermeiros, assistentes sociais, auxiliares de enfermagem etc. têm o mesmo dever. Assim constou do meu voto:

“A reprovável ação da médica, caracteriza-se por ter produzido prova ilícita, na medida em que feriu o princípio constitucional da tutela à intimidade e um dos fundamentos da República Brasileira, agasalhado no artigo 3º da Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana. Sob o manto destes princípios e valores fundantes é que se encontra o direito ao segredo profissional, com normativa que pode ser encontrada: no artigo 154 do Código Penal (que tipifica o crime de revelação de segredo, sem justa causa, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem); artigo 207 do Código de Processo Penal (estabelece a proibição de depor para as pessoas que devem guardar segredo em função de ministério, ofício ou profissão); no artigo 229, inciso I do Código Civil; artigos 347, inciso II e 406, inciso II do Código de Processo; além do Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina.

(…)

Ao estabelecer a obrigatoriedade do sigilo médico, na ordem infraconstitucional, o legislador estabeleceu mecanismo para dar concretude ao princípio da proteção da intimidade. Em uma sociedade minimamente civilizada existe o interesse social para que se resguarde o espaço íntimo de cada ser humano.

O sigilo médico também visa dar concretude ao direito constitucional à saúde. Todo paciente tem o direito de ser atendido por um médico, com segurança de que tudo poderá revelar sobre seu histórico e condições físicas e mentais, para que a atenção médica possa ser correta e adequadamente ofertada. Se o paciente não está seguro quanto à autoincriminação, diante do profissional da medicina, que poderia revelar as informações prestadas em razão desta relação de confiança, ínsita no atendimento médico-paciente, por certo a vulnerabilidade deste último se agiganta, com a consequente mitigação do direito à saúde, com possibilidade de colocá-la em risco e não a assegurar devidamente”.

 Voltemos à portaria.

Nos considerandos, a justificativa apresentada para sua edição é a alteração do Código Penal, introduzida pela Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que tornou pública incondicionada a ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, o que não guarda qualquer fundamento.

É que a natureza da ação diz respeito tão somente à legitimidade de sua propositura. Até então, a ação penal só poderia ter início se a vítima representasse, ou seja, manifestasse a vontade de que o processo penal fosse instaurado. Com a alteração de 2018, o Ministério Público não necessita da autorização para propor a ação e o inquérito pode ser instaurado sem vinculação com o desejo da vítima.

Mas, evidentemente, a transmutação da natureza da natureza da ação penal não cria uma obrigação para que profissionais da saúde e correlatos comuniquem o fato para a polícia. Aliás, a regra geral do sistema penal é que as ações penais são públicas. A esmagadora maioria dos crimes não exige representação e nem por isso temos a obrigação de comunicação para a autoridade policial. Os fatos penais geram obrigação de atuação para a polícia e para o Ministério Público, mas não para os cidadãos.

Ao tempo do voto referido não tínhamos a lei 13.931, de 10 de dezembro de 2019, que alterou a Lei 10.778/2003, com vigência desde março de 2020, que instituiu a comunicação dos fatos à autoridade policial, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.

Essa comunicação fere os princípios constitucionais acima referidos e olvida que o Brasil é signatário de convenções de proteção aos direitos da mulher, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará, entre outras, e nesta medida tem compromissos internacionais a cumprir, em obediência a sua soberania.

Esse conjunto normativo tem como eixo fundamental a atenção integral e, especialmente, a atenção necessária em relação à violência contra a mulher. Qualquer medida que dificulte o acesso à saúde, que reduza possibilidades de atendimento, que afaste a mulher dos espaços de assistência, caracteriza-se por ser inconstitucional e inconvencional.

É indispensável realizar a separação de dois momentos decisórios na hipótese de violência sexual: o da interrupção da gravidez e do iniciar um processo criminal. Não se pode transformar os agentes do sistema de saúde e todos os profissionais correlatos à ação de saúde em policiais. A ambiência médica não pode se mutar para uma ambiência policial. São naturezas que não se conversam. O Estado, pós-violência sexual, tem de estar ligado no canal do acolhimento, cuidado, informação, direitos e serviços.

A atenção ao processo de investigação criminal deve ser garantido, mas não pelos profissionais de saúde e nem no contexto de atendimento de ação de cuidado e do bem-estar da vítima.

Os obstáculos para as mulheres e meninas realizarem o abortamento legal, mesmo decorridos 80 anos do Código Penal, são gigantescos e a Portaria 2282 cria mais dificuldades para acessar esse direito tão longevo.

É necessário revogá-la, afinal, se nem o aborto ilegal pode ser divulgado pelo médico, o que dizer do aborto praticado nas hipóteses legais?

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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