Por Reinaldo Azevedo
É conhecida a frase de Pedro Aleixo, então vice-presidente, quando Costa e Silva decidiu baixar o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”. A fala tem seu valor para explicar a banalização da violência a partir das práticas truculentas que emanam do centro do poder. Mas é claro que não fazia justiça a Costa e Silva e auxiliares: o problema também estava no presidente e naqueles que com ele governavam porque todos irmanados na mesma ordem ditatorial. O AI-5 só exporia ainda mais a sua face liberticida. É inegável, no entanto, que aquela decisão deu sinal verde aos homicidas que compunham a base do regime. Torturaram e mataram sem nenhum temor nem perigo.
Homens na Polícia Rodoviária Federal abordaram nesta quarta, em Umbaúba, litoral de Sergipe, Genival de Jesus Santos. Vídeos que circulam em todo canto registram um entrevero entre os policiais e Genival, que é então imobilizado. Poderiam, se fosse o caso — e nem estão claras as razões por que o homem foi parado — tê-lo algemado. Quando há resistência ativa, pode-se recorrer a tal expediente. Tinham a alternativa, se necessário fosse, de chamar reforço.
Mas não! Aos olhos de pessoas que acompanhavam a filmavam a ação, sem qualquer receio, decidiram fechá-lo no porta-malas da viatura, com as pernas de fora, presas pela tampa. Já aí fica caracterizada prática inequívoca de tortura porque resta evidente que o homem só permanecia imobilizado à custa de ferimentos nos membros inferiores. Pareceu pouco.
Um dos policiais jogou uma grande quantidade gás no porta-malas — que a PRF chama candidamente de “instrumento de menor potencial ofensivo” —, mantendo a tampa pressionada. Ouvem-se gritos, urros mesmo, do Genival, que estava preso numa câmara de gás improvisada. Depois de algum tempo, ele para de mexer as pernas. Genival morreu.
Abordagem policial? Não! Tortura. Assassinato. Crueldade.
Eis o Estado brasileiro, que se mostrou por meio da Polícia Rodoviária Federal, a Genival. O episódio se deu no dia seguinte ao massacre da Vila Cruzeiro, de que a PRF participou — notando-se que ações em áreas urbanas não estão entre as suas atribuições. Pretextou-se que os criminosos que eram alvos da operação dedicavam-se ao roubo de cargas, o que então atrairia a competência da corporação.
Numa democracia digna desse nome, os policiais deveriam ter sido presos tão logo as imagens começaram a circular nas redes sociais. Não nestes tempos. A despeito do que as imagens evidenciam, a PRF divulgou a seguinte nota:
“Na data de hoje, 25 de maio de 2022, durante ação policial na BR-101, em Umbaúba-SE, um homem de 38 anos resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe PRF. Em razão da sua agressividade, foram empregados técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba.
Durante o deslocamento, o abordado veio a passar mal e socorrido de imediato ao Hospital José Nailson Moura, onde posteriormente foi atendido e constatado o óbito.
A equipe registrou a ocorrência na Polícia Judiciária, que irá apurar o caso. A Polícia Rodoviária Federal em Sergipe lamenta o ocorrido e informa que foi aberto procedimento disciplinar para averiguar a conduta dos policiais envolvidos”.
CINISMO
É uma nota cínica. Embora se fale na abertura de “procedimento disciplinar”, o texto justifica a ação dos policiais. Doravante, passa a ser lícito, caso os agentes acusem alguma forma de resistência, prender as pessoas e executá-las em câmaras de gás. Inexiste pena de morte no país. Vale para a Vila Cruzeiro, no Rio. Vale para Umbaúba, em Sergipe. Vale para todo o Brasil.
Releiam a nota. Assistam ao vídeo. A PRF diz que Genival “passou mal durante o deslocamento”, tendo sido “socorrido de imediato”, como se os policiais houvessem, de fato, se comportado segundo as regras. Eis uma polícia que não protege, mas aterroriza.
VILA CRUZEIRO E O RESTO
Homens da PRF participaram do massacre na Vila Cruzeiro, elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro. A morte de 25 pessoas, sob o pretexto de combater o crime, acena para o vale-tudo. E é claro que há o risco de que práticas truculentas e homicidas passem a fazer parte da rotina da instituição.
A PRF está em todo país. Seus homens não podem se comportar como milicianos. Não se enganem: na terça, a montanha de mortos da Vila Cruzeiro; na quarta, o Genival, em Umbaúba; nesta quinta, pode ser um amigo seu; na sexta, você. Se o poder que emana de Brasília — e a PRF é subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública — diz aos agentes que tudo lhes é permitido, fazendo, a exemplo do presidente, a apologia da violência, então os “guardas da esquina” de Pedro Aleixo se sentirão à vontade para inovar nas práticas de tortura e morte.
Wallyson de Jesus, sobrinho de Genial, afirmou que o tio tinha transtorno mental:
“Eles pediram para que ele levantasse as mãos e encontraram no bolso dele cartelas de medicamentos. Meu tio ficou nervoso e perguntou o que tinha feito. Eu pedi que ele se acalmasse e que me ouvisse”.
Os agentes só aguardam agora os “parabéns” de Bolsonaro.
Voltemos a Pedro Aleixo: os “guardas de esquina” de sua fala se consideram agora soldados da causa do capitão. E um dos ídolos do seu ídolo era um torturador.
A propósito: as próximas eleições também decidirão um “sim” ou um “não” a massacres e a câmaras de gás.
Artigo publicado originalmente no UOL.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *