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Em revista, a questão dos precedentes qualificados e persuasivos

Em revista, a questão dos precedentes qualificados e persuasivos

Recebi a Revista de Precedentes, editada pela diretoria científica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) — Volume 1, número I (acessar aqui). Cumprimentos pela iniciativa. Revistas jurídicas sempre são muito bem bem-vindas. Assim, desde já indago se, para os próximos números, é possível remeter/submeter artigos.

Sigo. Chama a atenção que a parte primeira trate do sistema de precedentes qualificados. O capítulo é de autoria de Juan Pablo Couto de Carvalho, membro da AGU e professor, e Maria Fernanda Wirth, mestre em direito e assessora de ministra do STJ.

Enfim, pensei, vou entender, finalmente, o que são os precedentes qualificados e por que são assim chamados.

Vejamos o que diz o tópico que pretende explicar esses precedentes. Depois de reproduzir o dispositivo e os incisos, dizem os autores:

“Aqui cabe esclarecer que o art. 927 indica decisões ou enunciados que possuem efeito vinculante, de observância obrigatória na jurisdição. Isso não significa, contudo, que os demais precedentes e a jurisprudência cujos substratos (decisões, acórdãos etc.) não constam nesse enunciado não mereçam ser observados. Ao contrário, todo precedente vincula os Tribunais de alguma maneira, funcionando como forte ferramenta de persuasão, o que justifica o estudo da pesquisa de jurisprudência”.

Guardados os devidos contextos, até aqui a afirmação está correta, no sentido de que todo precedente, atendidos certos requisitos, vincula. Sempre falei que, em uma democracia, qualquer decisão de Tribunal Superior deve ser aplicada a partir da coerência e integridade — artigo 926 do CPC, dispositivo, aliás, produto de sugestão minha ao relator Paulo Teixeira. Mas uma decisão deve vincular pelo fato de ser precedente e não por ser uma norma geral e abstrata construída para o futuro. Que é o que se tem verificado. E mais: um precedente deve “vincular” desde que entendido qual é o sentido da vinculação. O que “vincula”, afinal, não é “a decisão”. O que vincula é a lei à qual o precedente se refere. Precedente não tem vida autônoma.

Mas vejamos a sequência.

“O Código não estabelece uma dicotomia entre precedentes vinculantes (que estariam no rol do art. 927) e precedentes persuasivos ou não vinculantes (que não constam no arrolamento do referido artigo). Todo precedente deve, necessariamente, ser observado e considerado dentro de seus limites hermenêuticos e relevância para o caso posterior.”

Ora, os que os autores não falam — e poucos na doutrina se insurgem contra isso — é que, se o código não estabelece, por qual razão o tribunal ou os Tribunais Superiores podem alterar o CPC dizendo o que ele não diz?

Essa é uma questão antiga. Quais os limites da jurisdição? Pode o Tribunal legislar? Pode produzir teses e normas gerais para o futuro?

E veja-se a consequência drástica dessa dicotomia na aplicação dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP. Não é necessário dizer, aqui, a consequência dessa dicotomia na aplicação dos aludidos dispositivos. O STJ, aliás, aplica a dicotomia para redefinir o conteúdo do inciso VI do artigo 489, parágrafo 1º do CPC, problemática que tratei em artigo nesta ConJur.

Os próprios articulistas reconhecem o que é lei e seu valor. Eis:

“Esse novo modelo de precedentes foi criado de maneira expressa pelo legislador, objetivando uma maior previsibilidade no ordenamento jurídico”.

Sim, se o modelo foi criado pelo legislador, por qual razão essa criação pode ser alterada, sem controle de constitucionalidade, por quem não tem poderes de legislador? Aliás, o próprio STJ possui um precedente (seria qualificado ou persuasivo?), da relatoria do então ministro Teori, pelo qual, na Recl. 2.645, diz: não se admite que seja negada aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo “sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade (e aqui me permito acrescentar as seis hipóteses de não aplicação de leis constantes na CHD).

Ou seja, podemos verificar aqui uma contradição no texto dos articulistas: “Foi criado de maneira expressa pelo legislador”. Mas e se o próprio texto dos articulistas fala — corretamente — que o código não distingue precedentes “vinculantes” de precedentes “persuasivos”?

Em síntese, depois de dizer que o artigo 927 não trouxe dicotomia, a Revista acentua:

“Esses precedentes, enunciados no art. 927 do CPC, têm três eficácias distintas: EFICÁCIA PERSUASIVA – sua finalidade é persuadir o magistrado, funcionando como uma diretriz para a decisão, tendo poder para influenciar a solução do caso concreto. EFICÁCIA VINCULANTE – a eficácia vinculante ocorre se houve similitude fática e jurídica ente o caso apresentado e o acórdão paradigma. EFICÁCIA OBSTATIVA – impede a interposição de novos recursos para discutir teses já pacificadas nos precedentes listados no art. 927 do CPC“.

De novo: se o legislador não estabeleceu dicotomia, por qual razão a jurisdição pode fazê-lo?

Isso é o que Dworkin chama de grave defeito do positivismo: o criterialismo. Nossa prática e nossa dogmática são criterialistas. Criam seus próprios critérios ad hoc, num jogo de linguagem próprio, fora dos quais não se pode fazer sentido de uma discussão. Só que os critérios são arbitrários.

Resta saber, ao fim e ao cabo, se a decisão (ou as decisões do STJ) que estabeleceram a dicotomia que o CPC não estabeleceu é, ela mesma, um precedente qualificado. Para que o próprio argumento não perca a coerência. Aliás, se há precedentes qualificados, persuasivos (o quanto são persuasivos?) e obstativos, não seria o caso de, a cada citação, colocar ao lado o que cada precedente é? E o precedente for persuasivo, por qual razão se escolheu esse e não outro? Não deveria haver uma justificativa? Por exemplo, o que dizer do precedente da Recl. 2.645?

Dizer que precedentes qualificados são os que estão no CPC não resolve. Até porque, se o Código não fala que são precedentes qualificados, o mínimo que se espera é uma construção dogmática mais robusta sobre o significado dos precedentes qualificados.

Criam-se os critérios, mas não se os explica. Trata-se — e a crítica aqui é acadêmica e lhana, como é de meu feitio — de um criterialismo (falo no sentido de Dworkin).

Eis minha contribuição desta semana sobre o recorrente tema dos precedentes [1].

Numa palavra — e recorro uma vez mais a Donald Davidson e seu “princípio da caridade epistêmica” —, essa é uma discussão que os tribunais deveriam fazer com toda a comunidade jurídica. Mas não é o que se tem visto.


[1] Além de dois livros, já muito escrevi sobre isso na ConJurPrecisamos falar sobre os precedentes à brasileira (acesse aqui), Ainda e sempre o ponto fulcral do direito hoje: o que é um precedente? (acesse aqui), A jurisdição constitucional e a “cultura de precedentes” (acesse aqui), A pergunta: o que é necessário para existir um precedente? (acesse aqui).

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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