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Entre bondades, desespero e kamikazes: a PEC 1/2022 e o esquecido conteúdo compromissório e sócio-econômico da constituição de 1988

Entre bondades, desespero e kamikazes: a PEC 1/2022 e o esquecido conteúdo compromissório e sócio-econômico da constituição de 1988

Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Almir Megali Neto

Nos últimos dias, uma questão constitucional tem ocupado a cena política nacional. Trata-se da discussão em torno da constitucionalidade da PEC 1/2022, aprovada pelo Senado Federal e já encaminhada à Câmara dos Deputados, que cria o estado de emergência para ampliar o pagamento de benefícios sociais pelo governo federal.

Para nós, a PEC 1/2022 é inconstitucional, por ferir o federalismo, o direito ao voto livre e os direitos e garantias fundamentais, cláusulas pétreas da Constituição. O federalismo resta violado, na medida em que a proposta onera demasiadamente os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, ao criar despesas e reduzir receitas sem a sua participação, o que, por certo, compromete sua capacidade para o exercício das suas competências constitucionais. O direito ao voto livre, enquanto direito fundamental, por sua vez, resta violado, pois a PEC 1/2022 permite o aumento dos gastos do governo federal com benefícios sociais em período vedado pela legislação eleitoral, em evidente abuso de poder político e econômico, suficientemente capaz de alterar a normalidade das eleições de outubro deste ano.

Além do mais, ao contrário do que tem sido dito a seu respeito, a PEC 1/2022 não é kamikaze por furar o teto de gastos ou ferir a política de austeridade fiscal. A EC 95 não serve de parâmetro para a constitucionalidade da PEC 1/2022, pois essa emenda é inconstitucional. Por essa razão, julgamos perfeitamente possível sustentar a inconstitucionalidade da PEC 1/2022, sem que isso implique a constitucionalidade da EC 95, pois o teto de gastos por ela criado torna excepcional a atuação do Estado para atender às necessidades da população, especialmente a mais vulnerável, o que deveria ser e é, nos termos da Constituição de 1988, o seu papel primordial.

Sendo assim, a PEC 1/2022 fura o teto de gastos ou rompe com a suposta austeridade fiscal, mas de modo arbitrário. Os termos do debate precisam ser recolocados de modo honesto e não hipócrita: a EC 95 não é apenas inconstitucional, mas deve ser inteiramente revogada pelo Congresso Nacional. Além disso, o verdadeiro problema está na política não diferenciada de preços adotada pela Petrobrás, uma empresa estatal que faz parte da administração pública indireta. Criou-se uma mentira e passou-se a acreditar nela. Nunca os acionistas lucraram tanto com a paridade de preços. O mesmo mercado que questiona a PEC 1/2022 é que criou as condições, com a cumplicidade do Estado, para que ela seja adotada.

Por fim, ainda que a Lei 9.504/97 (Lei Geral das Eleições), art. 73, § 10, com a redação da Lei 11.300/2006, permita a concessão de benefícios sociais em ano eleitoral na situação de estado de emergência, é preciso destacar não ser cabível a comparação com a Constituição portuguesa, como se estado de emergência aqui devesse significar o que significa em Portugal, ou mesmo com o que significava na Carta autoritária de 1937. Se há um problema com a definição do que seja “estado de emergência”, há um problema na própria Lei 9.504/1997 que precisa ser resolvido à luz da atual Constituição da República e não de outro parâmetro normativo, afim de que o reconhecimento desse não configure caso de fraude à Constituição e à legislação eleitoral.


[1] Para os Professores Gilberto Bercovici e Theresa Calvet, que leram a primeira versão deste texto.

Artigo publicado originalmente no Empório do Direito.

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