728 x 90

Foi golpe sim!

Foi golpe sim!

Sobre o afastamento de Dilma, não há outra interpretação que decorra da Constituição

Ronald Dworkin, o maior pensador do direito anglo-saxão da segunda metade do século 20 e do início do século 21, escreveu em 1999 um artigo para o periódico The New York Review intitulado “A Kind of Coup” (em tradução livre, “Um Tipo de Golpe”), no qual valeu-se da palavra “golpe” para se referir à hipótese do impeachment inconstitucional, banalizado e utilizado fora de situações de extrema emergência e gravidade.

O autor chegou a valer-se de uma figura de linguagem para comparar a excepcionalidade do impeachment ao uso da arma nuclear numa guerra: ambos destinados apenas para uma situação de extrema gravidade e emergência.

banalização do impeachment —isto é, sua utilização em questões menores, cotidianas, de meras ilegalidades ou inconstitucionalidades, que são indesejáveis, mas podem ocorrer no cotidiano da administração pública— é uma forma de usar de um instituto criado pela Constituição para golpeá-la. Atualmente, os juristas norte-americanos chamam isso de constitucionalismo abusivo.

A Constituição de 1988, no Brasil, segue a mesma linhagem. No seu artigo 85, ela não indica como razão jurídica o impeachment a mera ilegalidade ou inconstitucionalidade. Ela usa a expressão “atentar contra” a Constituição. Ou seja, exige-se uma conduta extremamente grave.

Da conjunção do presidencialismo com o regime democrático impõe-se a exigência de gravidade dolosa. Possíveis irregularidades em atos meramente contábeis e ilegalidades não justificam, à luz da determinação constitucional, o impeachment do presidente da República.

O impeachment possui duas dimensões: uma jurídica e uma política. A dimensão jurídica é vinculada: deve haver a presença do crime de responsabilidade. A política implica que, mesmo havendo o crime de responsabilidade, o Legislativo pode, discricionariamente, deixar de aplicar a sanção de impeachment. Ou seja, ao contrário da Justiça penal, ele não está obrigado a aplicar a sanção quando houver o crime de responsabilidade.

Destaque-se, aqui, que há um erro em interpretar a Constituição à luz da vetusta lei 1.079/1950, não o contrário. As condutas elencadas na lei só podem ensejar impeachment se possuírem a gravidade que a Constituição determina.

No regime presidencialista, o mandato não pode ser interrompido por mero voto de desconfiança do Legislativo. Ademais, não se pode aplicar a regra da culpa grave para, num equivocado mecanismo hermenêutico de interpretação da Constituição pela lei, entender-se que ela bastaria para o impeachment.

Assim considerando, jamais pode-se ter que “pedaladas fiscais”, práticas contábeis que sempre foram adotadas por todos os governantes e voltaram a ser exercitadas depois do governo Dilma Rousseff (PT), poderiam ensejar o impeachment da ex-presidente, inclusive por atos que ela pessoalmente não praticou.

No caso da ex-presidente Dilma, não houve crime de responsabilidade em sua dimensão vinculada ou jurídica, mas mesmo assim o Parlamento aplicou a sanção de impeachment —e o Judiciário silenciou a respeito. Segundo as lições de Ronald Dworkin, isso é golpe. Não foram os progressistas brasileiros que criaram a expressão “golpe” para designar esse tipo de situação. Foi um dos maiores juristas de nossa história. Não há outra interpretação que possa decorrer de nossa Constituição. Foi golpe sim!

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

Compartilhe

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *

Mais do Prerrô

Compartilhe