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Mulheres, conquistamos o direito ao voto, e agora?

Mulheres, conquistamos o direito ao voto, e agora?

Por Núbia Nette Alves Oliveira de Castilhos

Há o direito ao voto, mas não há proporcionalidade da representação das mulheres em candidaturas

Quando pensamos em democracia, uma das primeiras coisas que nos vêm à mente é a liberdade de escolha de nossos governantes. Em outras palavras, o direito ao voto. Nas eleições municipais de 2020, os partidos políticos no Brasil ainda tentaram justificar o injustificável – a disparidade do número de candidaturas entre homens e mulheres, ficando estas últimas pouco acima do percentual obrigatório pela lei eleitoral.

Não obstante a maioria da população brasileira seja formada por mulheres, segundo informações constantes na página do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de um total de 557.361 candidaturas às eleições municipais de 2020, 64,4% (370.352) foram de homens e apenas 33,6% (187.008) de mulheres [1].

De antemão, já é possível inferir desses dados que há algo desproporcional se colocarmos lado a lado o direito ao voto e à representação do grupo que constitui a maioria do povo brasileiro. Há o direito ao voto, mas não há a proporcionalidade da representação das mulheres em números de candidaturas. E nem estamos falando do número de mulheres eleitas, apenas candidatas.

Desde 2009, com a introdução do §3º ao artigo 10 da Lei 9.504/97, pela Lei 12.034/2009, do número de vagas resultante das regras previstas no artigo 10 da Lei Eleitoral, cada partido ou coligação deve preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Foi a instituição das cotas para candidaturas femininas. É lei. É obrigatório.

Em um país cuja história das mulheres é marcada pelo patriarcado, pelo machismo e pela divisão sexual do trabalho, onde, via de regra, as instâncias públicas (econômicas) são destinadas aos homens e as instâncias privadas (domésticas) às mulheres, é essencial o conhecimento da realidade, exemplificada por diversos indicadores.

Para se ter uma ideia das diferenças de tratamentos entre os gêneros, em 2019 os homens tiveram rendimento médio mensal 28,7% maior do que o das mulheres, considerando os ganhos de todos os trabalhos. Enquanto eles receberam R$ 2.555, acima da média nacional (R$ 2.308), elas ganharam R$ 1.985, segundo o módulo Rendimento de Todas as Fontes, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgado pelo IBGE [2].

Não se pode falar em igualdade de políticas entre os que estão em situações historicamente desiguais, porque antes é necessário que haja um nivelamento mínimo entre as situações de desigualdade, na busca pela igualdade material – por exemplo, com a implementação de ações afirmativas para inserção das mulheres nos diversos espaços públicos.

E nesse ponto, nos deparamos com a fragilidade ou insuficiência da democracia liberal, ao exacerbar o individualismo e o abstracionismo em contraposição à representação de grupos, ao conferir tratamento igual aos desiguais, e ao considerar o direito ao voto como o ápice do exercício da democracia. Nesse emaranhado de negacionismos, diferenças de gênero, classe e raça dificilmente são consideradas.

Conforme aduz Anne Phillips (2011): [3]

“Os democratas liberais, em particular, acreditam ter estendido todos os direitos e liberdades necessários às mulheres ao permitir-lhes o voto nos mesmos termos dos homens. Isso é simplesmente inadequado, como até os indicadores mais crus (como o número de mulheres na política) mostram. A democracia não pode pairar acima da diferença sexual, mas tem que ser redefinida com essa diferença em mente. Uma implicação óbvia é que a democracia deve lidar conosco não apenas como indivíduos, mas como grupos”.

E então, voltamos à cota dos 30% de obrigatoriedade de candidaturas femininas em nossa legislação. Não há dúvidas de que apesar desse percentual não ser proporcional ao fato de a maioria da população brasileira ser composta por mulheres, a cota eleitoral é fundamental, é um importante começo, mas não deve se esgotar em si mesma. E tal reflexão é necessária não apenas porque o percentual não reflete uma proporcionalidade propriamente dita, mas também porque, para além das candidaturas de fachada utilizadas pelos partidos políticos apenas para o preenchimento da cota, é preciso refletir se estão sendo ofertadas as condições para a efetiva participação das mulheres nos processos eleitorais.

Nesse sentido, alguns questionamentos são imprescindíveis: o trabalho doméstico e de cuidados com a família está sendo assumido também pelos companheiros, para que as candidatas disponham de tempo para suas campanhas? As reuniões partidárias e com o eleitorado estão tendo a participação das candidatas, inclusive daquelas que possuem filhos pequenos e não têm com quem deixar?

Há creches ou espaços adequados nos locais das reuniões políticas para que essas mulheres também exerçam seus direitos de participação e de campanha? E os planos de governo, foram suficientemente discutidos e apropriados por elas? Os partidos políticos viabilizaram programas específicos para a formação das lideranças femininas, em especial para as que não tiveram uma educação formal adequada?

Precisamos pontuar que nesse debate a intersecção entre mulheres, raça e classe é de grande importância. Não há como fazer a discussão qualificada de igualdade entre homens e mulheres sem essas três vertentes, sobretudo em razão do nosso passado escravocrata de período tão extenso e recente. Não podemos olvidar que esse entrelaçamento é inevitável para a correção das injustiças dos nossos sistemas social e econômico.

Para que a política pública de cotas não seja apenas mais um instrumento de tentativa de implementação de uma igualdade apenas formal, mas, acima de tudo, substancial, é imprescindível que se olhe, efetivamente, para as condições que as mulheres possuem hoje para participar da vida política. É necessário que essas condições sejam criadas, como eixos inafastáveis para a participação de um grupo que historicamente se viu alijado dos processos de decisão. E, nessa toada, a discussão sobre os papéis de homens e mulheres nas esferas pública e privada precisam ser enfrentados e redefinidos.

A magnitude da desigualdade pode ser verificada em matéria publicada em 2 de novembro de 2020, no jornal Folha de S.Paulo, denunciando que até aquele momento os partidos políticos estavam descumprindo a obrigação de repassar o dinheiro da verba eleitoral para negros e mulheres. Segundo o jornal, “os dados são da prestação de contas parcial dos candidatos entregues à Justiça Eleitoral e mostram que a maior parte das siglas não cumpriu a regra da distribuição de recursos às mulheres na proporção das candidaturas lançadas. (…) e que, na média, homens foram beneficiários de 73% do dinheiro” [4].

Os resultados das eleições de 2020 não foram animadores. Foram eleitos 4.782 homens para a chefia dos Executivos municipais, ao passo que foram eleitas apenas 655 mulheres para o mesmo cargo. Em 2016, haviam sido eleitos 4.827 prefeitos e 636 prefeitas [5]. Em 2020, portanto, tivemos somente 19 prefeitas a mais que em 2016. Número pífio, que não requer maiores comentários, sendo o espelho de diversos fatores aqui externados.

Nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, foram eleitas apenas 77 deputadas, ao passo que os homens ocuparam 436 cadeiras; para o Senado, foram apenas 12 senadoras, ante 69 senadores.

O liberalismo por si só já privilegia o capital e as pessoas que o detêm. A democracia, o voto e as cotas infelizmente não conseguem garantir uma participação igualitária das mulheres no seio de uma sociedade tão desigual em termos de distribuição de renda como o Brasil.

Como formas de combater essa constatação desoladora, mas real, vemos a necessidade de implementação de políticas públicas e privadas estruturantes de gênero; a ressignificação dos espaços público e privado e a participação de homens e mulheres nesses espaços; a criação da consciência de que um ambiente com maior participação feminina contribui com o desenvolvimento sócio e econômico da sociedade; formação política para mulheres e ações e incentivos específicos para garantir a sua participação na vida pública; enfoque das plataformas políticas em diversidade e na diferença (PHILLIPS, 2011) [6].

Instituições jurídicas também podem dar sua contribuição, na medida em que:

“(…) elas podem eventualmente produzir curto-circuitos nos sistemas políticos. Ao traduzir uma demanda social em uma demanda jurídica nos deslocamos de um ambiente de competição por puro poder para um processo no qual as decisões devem ser justificadas em termos jurídicos. A necessidade de justificativa legal reduz o espaço de pura discricionariedade. Nessas circunstâncias, o sistema jurídico pode dar visibilidade pública, na forma de reconhecimento de direitos àqueles que são desconsiderados pelo sistema político e pela própria sociedade. Na mesma direção, a generalidade da lei, a transparência ou a congruência reivindicada pela ideia de Estado de Direito pode pôr os privilegiados em uma armadilha, fazendo com que eles retornem ao domínio do Direito” (VIEIRA, 2007) [7].

Não obstante o ceticismo atual desta autora, espera-se que nos resultados das urnas de 2022 o individualismo do liberalismo dê uma trégua para que esses números tão vergonhosos, vistos em 2018 e 2020, não se repitam. É ver para crer.


[1] Disponível em http://inter04.tse.jus.br/ords/dwtse/f?p=EST_ELEICAO:HOME, acesso em: 2/11/2020.

[2] Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019, acesso em: 04/09/2020.

[3] PHILLIPS, Anne. O que há de errado com a democracia liberal? Revista Brasileira de Ciência Política, nº 6, Brasília, julho-dezembro de 2011, pp. 339-363.

[4] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/partidos-descumprem-regra-de-repasse-de-verba-de-campanha-para-negros-e-mulheres.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail

[5] https://www.justicaeleitoral.jus.br/participa-mulher/, acesso em 22/03/2021.

[6] PHILLIPS, Anne. O que há de errado com a democracia liberal? Revista Brasileira de Ciência Política, nº 6, Brasília, julho-dezembro de 2011, pp. 339-363.

[7] VIEIRA, Oscar Vilhena. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, número 6, ano 4, 2007.

Artigo publicado originalmente no Jota.

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