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No Estado laico, juiz não pode atuar como intérprete da fé

No Estado laico, juiz não pode atuar como intérprete da fé

O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, no último dia 27, que o Grupo Católicas Pelo Direito de Decidir não pode utilizar a palavra “Católicas” em seu nome, por se tratar de entidade favorável à legalização do aborto cuja atuação e finalidade revelam “pública, notória, total e absoluta incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal” (leia aqui).

A ação, proposta pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, havia sido rejeitada em primeira instância. Em sede recursal, contudo, foi julgada procedente à unanimidade. Em seu voto, o Relator, desembargador José Carlos Ferreira Alves, citou trechos bíblicos e determinou que a entidade altere seu nome no prazo de 15 dias, sob pena de multa diária de mil reais. Segundo ele, a utilização do termo “católicas” pela referida organização é um “inegável desserviço à sociedade” e fere o “sentimento religioso de uma enormidade de pessoas”.

No Brasil, a Igreja Católica é a religião com maior número de fiéis e a que, formalmente, mais oferece resistência ao aborto, mesmo nos casos permitidos por lei. Esse não é, contudo, o entendimento da maioria da sociedade. Na contramão da decisão do TJSP, pesquisa do Ibope Inteligência, realizada em 2017, identificou que “64% dos brasileiros entendem que a decisão a respeito do aborto deve ser da própria mulher” e “apenas 4% dos entrevistados entendem caber à Igreja a decisão sobre a interrupção da gestação” [1].

Ainda assim, é comum que determinados grupos católicos atuem, judicialmente, para impedir a realização de abortos legais em caso de gestações decorrentes de estupro. Nem mesmo meninas, cuja gravidez em tenra idade apresenta risco à vida, são poupadas pelos fiéis mais radicais, tampouco o são as gestantes em casos de anencefalia. Trata-se de prática especialmente arquitetada contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e as organizações feministas, uma verdadeira cruzada daqueles que se entendem fiscais da fé.

Exemplos não faltam desse tipo de perseguição. Em 2003, a jovem G. O. C., de 19 anos, moradora de Teresópolis/RJ, se preparava para realizar o aborto de feto anencéfalo, autorizado judicialmente, quando foi surpreendida por um recurso apresentado por dois padres e, em seguida, um habeas corpus em favor do feto, para obstar o aborto, apresentado pelo padre presidente da Associação Pró-Vida, de Anápolis/GO, a mais de 1.200 quilômetros de distância.

Pouco tempo depois, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) requereu ingresso como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, que versou sobre a interrupção da gravidez em caso de anencefalia e não poupou esforços, sem sucesso, para que a ação — afinal julgada procedente pelo STF — não tivesse êxito. Desde então, grupos católicos buscam evitar casos de ampliação da decisão, para outras anomalias incompatíveis com a vida. Recentemente, a mesma CNBB apresentou seus argumentos contrários à ADPF nº 442, que discute a descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana.

Em todas essas manifestações, as entidades católicas, seus dirigentes e, sobretudo, os julgadores do Poder Judiciário se esquecem do essencial: que, em um Estado Laico, a fé é questão privada.

Não cabe aos magistrados decidir o grau de religiosidade de alguém, de um grupo de pessoas ou de uma organização. Tampouco pode afirmar, como intérprete da fé, que há “injusta, evidente e notória agressão aos claros valores” de determinada Igreja, pois a compreensão sobre quais são esses valores já é, por si, uma profissão de fé e de interpretação de seus testamentos. Como afirma Gisele Cristina Pereira, integrante de Católicas pelo Direito de Decidir:

“A Igreja Católica não é monolítica e homogênea. É plural com uma história milenar e marcada por muitas e significativas mudanças. Como bem lembrou nossa presidenta Maria José Rosado, a Igreja Católica, enquanto instituição, mudou em relação à inquisição e às cruzadas; se redimiu pela cumplicidade com o colonialismo, a escravidão e extermínio de povos, pelo silenciamento diante do holocausto. Mesmo quando e onde divergir era considerado crime, sempre existiram pessoas que se contrapunham àquilo que consideravam injusto e opressivo.

Também em relação ao aborto a posição sustentada oficialmente pela Igreja Católica nem sempre foi a mesma ou única em cada período histórico. Ainda hoje é tema de grandes debates no campo da moral, da teologia e da doutrina católica” [2].

O Brasil não tem um sistema de governo teocrático e sim democrático, onde se aspira à convivência harmoniosa das mais diversas confissões religiosas e filosóficas, nos termos da nossa Constituição Cidadã, que afirma a laicidade da República. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho o laicismo republicano se assenta sobre três princípios: “secularização do poder político; neutralidade do Estado perante as igrejas; liberdade de consciência, religião e culto”.

Tal liberdade, prevista no artigo 5º, VI da CF/88 como direito fundamental, prevê que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso, o artigo 19, I, traz a necessidade de neutralidade do Estado, já que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência”.

Isso significa dizer que todas as pessoas devem ser respeitadas, individualmente, em suas mais diversas manifestações religiosas e, ainda, em sua opção de, voluntariamente, serem ateias ou agnósticas.

A atuação do Estado, numa sociedade democrática, deve sempre se pautar no respeito a todos os seus representados, sem distinção. Por isso, tendo em vista o direito daqueles que não professam religião alguma; o de cada religioso, individualmente, levando-se em conta as mais diversas manifestações religiosas; o dos que divergem da posição oficial de sua religião; o Estado só exercita, verdadeiramente, o seu dever de respeito aos seus representados quando justifica seus atos não em fundamentos religiosos ou metafísicos, mas em razões públicas, as quais John Rawls define como “a razão de cidadãos iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição.” [3]

Segundo o filósofo americano, a razão pública tem como objeto as questões de justiça fundamental e “o bem do público”, o qual ele conceitua como “aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem servir”. [4] Essa é a diferença para a razão não-pública, como as razões dos grupos religiosos, das universidades, dos centros acadêmicos, dos movimentos estudantis, das organizações não governamentais, enfim, das incontáveis associações da sociedade civil, que possuem conceitos e objetivos próprios, além de maneiras diferentes de compreender o mundo, o que certamente influencia a resolução de um problema. A sua forma de argumentação é pública em relação a seus membros, mas não-pública em relação à sociedade política e aos cidadãos em geral. [5]

Eis o motivo pelo qual os atos estatais, advindos do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário devem se pautar em argumentos de razões públicas e respeitar as razões não públicas das mais diversas entidades e grupos religiosos.

De fato, se vivemos em uma sociedade laica e pluralista, os atos estatais devem se basear em razões públicas, não em argumentos religiosos, dogmas ou crenças individuais.

Enquanto a fé é uma questão privada, a legalização do aborto é uma questão de saúde pública, por se tratar da terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil [6] e em razão dos altos índice de mortalidade materna e morbidade a ele relacionadas.

A criminalização do aborto não impede sua prática, nem protege as mulheres. O contrário: empurra-as à clandestinidade, à esterilidade e à morte, perdas preveníveis e evitáveis, conforme denúncias do Grupo Católicas Pelo Direito de Decidir.

Em sua atuação, a ONG vem reforçando a necessidade de alteração da legislação brasileira, a exemplo de países vizinhos que, ao efetivar a completa descriminalização do aborto ou, ao menos, ampliar os permissivos legais para contemplar a saúde física e psicológica das mulheres, conseguiram reduzir a mortalidade materna ao possibilita-las a realização do aborto legal e seguro [7]. Além disso, reduziram o próprio número de procedimentos praticados, já que, ao buscar os meios oficiais de atendimento à mulher, também encontra o apoio que pode levá-la a repensar a decisão.

A organização presta, portanto, inegável serviço à sociedade e a nossa Carta Magna lhe garante o direito de professar sua fé com o nome que quiser.


[1] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/04/04/interna-brasil,586120/64-dos-brasileiros-entendem-que-o-aborto-e-decisao-exclusiva-da-mulhe.shtml

[2] https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/e-possivel-ser-catolica-sem-dizer-amem/.

[3] RAWLS, John. O liberalismo político. 2ª ed. SP: Editora Ática, 2000, p. 263.

[4] J. RAWLS, 2000, pp. 261/262.

[5] J. RAWLS, 2000, p. 269.

[6] VICTORA, C.G., AQUINO, E.M.L. et al. A saúde das mães: progressos e desafios. The Lancet Saúde no Brasil, 2011.

[7] GLOBAL HEALTH ORGANIZATION. Global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2003. Fifth edition 2007.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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