Tudo já foi dito sobre o comportamento do presidente da República. De jornalistas a jornaleiros, de vulgos aos cientistas, não faltaram palavras duras para epitetar as ameaças feitas à Constituição, às Instituições e, principalmente, à nossa Suprema Corte.
Os discursos do dia 7 de setembro foram o canto do cisne de sua Excelência. Rubicão atravessado, as caravelas foram todas queimadas.
O mais inusitado é que o presidente cria a tempestade perfeita para caos e crise e, ao mesmo tempo, invoca a Constituição.
Invoca o “santo” nome da Constituição em vão. Constituições são cartas de garantias. Feitas contra o arbítrio.
Bem dizendo, a Constituição é feita para proteger a sociedade de coisas que, para o espanto e perplexidade de todos , são pregadas pelo próprio presidente da República.
A Constituição alberga de tudo, menos as atitudes de Jair Bolsonaro.
Paradoxalmente, o seu alvo principal é o poder que tem a função de proteger a Constituição.
E, mais paradoxalmente, esse alvo é para onde correm o presidente e os seus aliados quando querem buscar a proteção de seus direitos.
O fato mais exemplificativo disso foi o dia em que um ministro do governo, de triste memória, disse que queria ver todos os onze ministros presos e, logo depois, buscou um habeas corpus junto à Corte que ele queria ver fechada.
E assim correm os dias.
O comportamento contraditório do presidente tem explicação no direito.
Chama-se de proibição de venire contra factum proprium, que quer dizer “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”. Uma Corte de Nova Iorque mostrou bem isso ao mundo, quando, no final do século XIX, impediu que o neto Elmer recebesse a herança do avô que ele matou justamente para recebê-la. Sim, matou o avô e como não havia lei proibindo que ele recebesse a herança, foi a juízo para buscar o seu “direito”.
O Tribunal deu-lhe a resposta: ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. E isso vale até hoje.
Para aqueles que acham que o STF está agindo “fora das quatro linhas”, é bom atentar para o caso Elmer.
No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal está fazendo algo similar. Está mostrando os limites do direito.
O limite do direito é, exatamente, o seu contrário: o arbítrio.
Não se pode utilizar a Constituição contra a própria Constituição.
Não se pode utilizar a Constituição de má-fé.
Acima da Constituição não está Deus (afinal, o Estado é laico); quem sustenta a Constituição é o Estado Democrático de Direito, que é fiduciado pelo STF.
Isso é assim aqui e em qualquer país do mundo (civilizado e democrático).
Fora disso é a barbárie.
Gente nas ruas pedindo ditadura e um presidente “dando corda”, faz-nos voltar ao inicio da modernidade, em que Hobbes propôs o contrato social para que se escolhesse entre a civilização e a barbárie. Quem quer a barbárie?
Ouvindo os discursos do presidente, lembramo-nos de dois filmes: La Dictadura Perfecta, do diretor Luis Estrada, e Wag the Dog (O rabo que Torce o Cachorro), de Barry Levinson (Com Dustin Hoffman e Robert de Niro).
Em comum nos dois filmes? Simples. O presidente da República de cada país precisa de uma “caixa chinesa”, isto é, a criação de um fato para desviar a atenção sobre algo grave que cometeu.
No filme de Estrada, era a corrupção. No filme com Hoffman e De Niro, o fato a ser escondido era o presidente que fizera sexo com uma adolescente no salão Oval, tudo devidamente filmado. Tudo às vésperas da eleição.
A solução? Inventar uma guerra contra Albânia. E multidões saíram as ruas para apoiar o presidente contra a pequena Albânia.
E o presidente se reelegeu. A “Caja China” funcionou.
Por aqui, para além das ficções, sabemos que a “Caja China” é o ataque ao Supremo Tribunal Federal.
O que a Caja China esconde? Bem, a lista é enorme. Cada um faz a sua.
Por tudo isso, todo o apoio à Suprema Corte. Para mostrar que, em uma democracia, ninguém pode se beneficiar do próprio caos que cria.
Venire contra factum proprium!
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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