Por Marina Pinhão Coelho Araújo
Recorrer a uma alteração constitucional como meio de bloquear o debate sobre a criminalização das drogas é uma medida de nítida natureza autoritária
Não há quem tenha, de alguma forma, se debruçado sobre temas de Direito Penal, violência e crime organizado e não tenha esbarrado com a questão da criminalização das drogas e seus diversos matizes. Não é um problema linear, não existe uma única resposta e não é uma discussão binária entre bons e maus, entre os que pregam a liberação das drogas e os que as querem proibir. Não é uma guerra entre heroínas e mocinhos, de um lado, e vilãs e vilões, de outro lado.
De todo modo, algumas certezas se impõem. O formato da proposta de alteração legislativa – uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) ordenando a criminalização da posse e do porte de entorpecentes – ofende a coerência e a lógica constitucional. A Constituição brasileira já previu a necessidade de programas de prevenção de drogas e qualificou o tráfico de drogas como crime hediondo.
Mas a definição da moldura de proteção e de como isso deve constar na legislação penal não é uma questão constitucional. Definitivamente. Subverte a estrutura normativa colocar na Constituição, justamente em seu artigo mais relevante para a dignidade humana, o que e como as drogas devem ser proibidas. Como bem escreveu José Carlos Dias em carta ao presidente do Senado, a proposta altera a espinha dorsal dos direitos e garantias do cidadão brasileiro, “algo sem precedentes em outros países democráticos”. A política não pode destruir e distorcer a Constituição. O Senado, especialmente quando presidido por um advogado criminalista, poderia e deveria fazer muito mais pelo povo brasileiro.
Não há que falar em defesa das famílias e dos jovens do País como motivo para alterar a Constituição. Todos nós defendemos as famílias e os jovens. Precisamente por isso, essa defesa deve ser efetiva, e não populista, irreal ou ineficaz. O Congresso Nacional tem a obrigação de enfrentar o debate da criminalização das drogas a partir dos efeitos concretos dessa criminalização na sociedade brasileira. É preciso aperfeiçoar a legislação, adequando-a às melhores experiências de prevenção, repressão e reestruturação da política de drogas, e não promovendo o retrocesso.
Em 2006, acertadamente, o Congresso retirou a pena de prisão do crime de uso de drogas, prevendo outros tipos de penalização. Continua sendo crime o porte de droga, só não é apenado com prisão.
Infelizmente, o Judiciário deu um sentido absolutamente equivocado a essa alteração legislativa. Juízes têm qualificado como traficantes, mesmo que não haja indícios concretos de tráfico, uma enorme quantidade de pessoas simplesmente por terem sido flagradas com drogas, independentemente da quantidade portada. Além de custos altíssimos para o Estado brasileiro, isso significa a prisão de muitas pessoas que não deveriam estar no cárcere – e que não deveriam estar por vontade expressa do legislador. Como é bem conhecido, esse superencarceramento leva a que muitas pessoas aproximem-se de facções criminosas e do crime organizado. É um verdadeiro tiro no pé que o Senado pretende inscrever na Constituição.
É um equívoco instrumentalizar o art. 5.º da Constituição para constitucionalizar uma política que encarcera pessoas jovens, pretas e pobres, pois, como mostram abundantemente as estatísticas, é esse o público afetado pela confusão entre uso/porte e tráfico/venda de drogas. São os habitantes das periferias das cidades que são impactados por essas prisões. São muito diferentes as consequências práticas do porte de drogas, a depender da região da cidade onde as pessoas são abordadas.
Com base nessas consequências, geradas pela aplicação distorcida da legislação de 2006, os ministros do Supremo Tribunal Federal discutem atualmente a possibilidade de estabelecer critérios objetivos para diferenciar as situações de uso e de tráfico, a partir da quantidade da droga e da qualidade da droga apreendida. Essa discussão não pode ser substituída por um revanchismo moralista de quem sabe que a constitucionalização da criminalização não afetará os seus filhos, mas apenas os outros.
A PEC 45 é uma resposta equivocada do Senado a esse julgamento, apresentado como uma afronta ao Legislativo e às suas competências. Ora, foi o Congresso quem excluiu, em 2006, a previsão de pena de prisão para o porte de drogas.
A criminalização das drogas exige um debate refletido, feito com seriedade e responsabilidade. Usar a Constituição para galvanizar respostas equivocadas, cujos efeitos são sentidos diariamente, é um disparate incompatível com a história e a identidade do Senado.
Recorrer a uma alteração constitucional como meio de bloquear o debate – debate este que tem sua origem precisamente numa corajosa reforma legislativa de 2006 – é uma medida de nítida natureza autoritária. Significaria usar o poder para silenciar as evidências. O Legislativo é a casa do debate, não do negacionismo. O País tem a premente necessidade de uma política exercida de forma magnânima, responsável e solidária. As famílias brasileiras agradecem.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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