Por João Paulo Cunha
A Constituição Federal de 1988, não à toa também conhecida como Constituição Cidadã, incluiu no rol dos direitos fundamentais o acesso à justiça. Essa mesma Constituição, imbuída do espírito de democratizar esse acesso, instituiu como serviço público essencial a assistência jurídica integral e gratuita, adotando um modelo estatal-público formidável de prestação de tal serviço (staff model). Assim, conferiu à Defensoria Pública o papel central na consecução da universalidade do acesso à justiça. Logo, por determinação constitucional, a assistência jurídica integral e gratuita às pessoas hipossuficientes deve ser prestada pelo Estado, através da Defensoria Pública.
Para o fiel cumprimento do comando constitucional, a legislação ordinária previu algumas prerrogativas aos membros da Defensoria Pública, dentre elas o poder de requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições.
Pode-se afirmar, assim, que o defensor público tornou-se uma atividade distinta do advogar. Aquela é uma atividade jurídica de demanda e defesa de interesses, com fulcro nos direitos e garantias fundamentais com expressão nas situações de vulnerabilidade que acometem a maioria da população brasileira. É postular com fulcro nos direitos existenciais, sem foco na eventual expressão econômica deles, e sempre em vistas a alcançar uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, CRFB/1988).
A importante e imprescindível prerrogativa da requisição para o fiel cumprimento dos objetivos da Defensoria Pública, encontra-se prevista na Lei Complementar 80 de 1994. Isso mesmo, 1994. Passadas quase três décadas, o Ministério Público Federal, através da Procuradoria-Geral da República, propôs exatas 22 ações diretas de inconstitucionalidade, visando a declaração, por parte do Supremo Tribunal Federal, de que essa garantia não se coaduna com o texto da Carta Maior.
Como pode ser verificado do texto legal, trata-se de prerrogativa a ser exercida no “exercício de suas atribuições”, oponível perante “autoridade pública” e “seus agentes” apenas. Logo, não podem Defensores e Defensoras requisitarem documentos de particulares e, em relação à autoridade pública e seus agentes, somente o podem no exercício de suas atribuições funcionais.
Diga-se, o poder de requisição se justifica para viabilizar que a Defensoria Pública possa ter acesso a informações e provas que garantirão a proteção dos direitos das pessoas necessitadas. É uma prerrogativa indispensável, na medida em que a Defensoria presta um serviço público essencial e gratuito. Ou seja, não possui controle sobre a demanda (sempre crescente) de pessoas hipossuficientes que precisam da assistência jurídica integral e gratuita. Soma-se a isto a deficiência estrutural histórica, decorrente de implementações emergenciais.
Nessa linha, a Defensoria Pública não tem estrutura suficiente para providenciar informações e provas da mesma forma. No caso da DPU, por exemplo, são apenas 644 Defensores e Defensoras Federais que se contrapõem a 1.151 membros e membras do MPF e 5.507 da Advocacia-Geral da União (AGU). Ou seja, o poder de requisição ameniza as desproporções estruturais entre as instituições que compõem o sistema de justiça.
Em suma, sem o poder de requisição, a Defensoria Pública sequer consegue elementos de informação e prova necessários para, preliminarmente, analisar a viabilidade das demandas das pessoas hipossuficientes que buscam o serviço público prestado.
É preciso, e isso necessita de registro, um sobrenatural esforço argumentativo para defender que a previsão dessa prerrogativa viola a Constituição Federal. A importância conferida pela Constituição e pela legislação ordinária à Defensoria Pública Brasileira tem um único fim: garantir efetivo acesso à Justiça à população carente. Busca-se garantir aos menos privilegiados o básico direito de lutar pelos seus direitos.
Alijar a Defensoria Pública de tal prerrogativa, é materializar o dizer de um ministro do STF “A Justiça é dura com pobres e mansa com ricos”. Os entraves que serão gerados à atuação da Defensoria Pública acaso prosperem as ações em trâmite no STF, esses sim, representam direta violação ao texto constitucional.
Como falar em acesso à Justiça, em expressão e instrumento do regime democrático de direito, em promoção de direitos fundamentais e em defesa de direitos individuais e coletivos dos mais necessitados com o surgimento de tamanho obstáculo?
Talvez, mais triste do que esse futuro que se avizinha, seja constatar os possíveis motivos pelos quais a Procuradoria-Geral da República busca a malfada declaração de inconstitucionalidade. No lugar de cumprir seu múnus constitucional e buscar o fortalecimento da Defensoria Pública brasileira, em verdadeira defesa da ordem jurídica, o Ministério Público parece agir movido por puro corporativismo, permeado por um receio de perder espaço no protagonismo jurídico nacional, numa corrida inexistente de concorrência institucional.
Sob o pretexto de buscar um equilíbrio processual, vez que os advogados não possuem tal prerrogativa, a Procuradoria-Geral da República vilipendia ainda mais a balança da justiça, já completamente desequilibrada. Se efetivamente preocupada em fazer Justiça, deveria diminuir as prerrogativas do próprio Ministério Púbico, sobretudo nas ações penais, cujas vantagens processuais põem diuturnamente em xeque um sistema processual penal acusatório, com amparo na ampla defesa e contraditório.
Fica a certeza de que, não bastasse a perda de inúmeros direitos sociais imposta por recentes políticas excludentes, busca-se agora exterminar o último local de socorro da população pobre brasileira: sua Defensoria Pública.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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