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As lições da impunidade em relação aos crimes do regime autoritário

As lições da impunidade em relação aos crimes do regime autoritário

Por Felipe Guimarães Assis Tirado, Jessica Holl, Monique Rocha Salerno Lisboa e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Uma sociedade que não se lembra de seus episódios mais violentos não aprende com eles e não busca evitar sua repetição

Apesar do empenho de certos órgãos estatais – como o Ministério Público Federal (MPF) – visando a responsabilização pelos crimes praticados durante o regime ditatorial de 1964-85, cabe afirmar que grande parte dos agentes que praticaram essas violações gozaram de total impunidade cível e criminal – ainda que, em alguns casos, tivessem admitido seus crimes.

Líderes políticos, juristas, acadêmicos e até organizações internacionais defendem que há uma correlação clara entre a impunidade de crimes do passado e a repetição destes no presente e futuro – tanto na perspectiva individual, quanto social. Essa relação se torna ainda mais forte em se tratando de violações ao Estado democrático de Direito e tentativas de rupturas institucionais.

No presente artigo, propomos um paralelo entre a falta de responsabilização de agentes que praticaram (ou contribuíram – por ação ou omissão – com a prática de) graves violações de direitos humanos durante a ditadura e a imperatividade de apuração e, posteriormente, responsabilização de agentes que praticaram – direta ou indiretamente, por ação ou omissão – o mais severo atentado contra o Estado democrático de Direito na Nova República, no último dia 8 de janeiro em Brasília.

Anteriormente, parte dos autores defenderam, no JOTA, que a responsabilização, da perspectiva da justiça de transição, diz respeito ao julgamento – cível e criminal – de perpetradores de violações de direitos. Um dos quatro pilares do campo, tem como objetivo, por um lado, coibir a prática futura dos crimes perpetrados e, por outro, garantir às vítimas a retribuição por suas perdas. 

Ainda no contexto da justiça de transição, objetiva-se a responsabilização dos agentes envolvidos no cometimento de graves violações de direitos humanos durante a ditadura (ou conflito armado, dependendo do caso). Em se tratando de um contexto pós-governo autoritário ou iliberal, a responsabilização também se mostra necessária; mais uma vez, como resposta a sistemáticas violações de direitos humanos.

A história brasileira demonstra, por si só, os perigos da não responsabilização, que passa também por uma anistia que pretendeu representar um esquecimento das violações perpetradas durante a ditadura civil-militar (isso para mencionar apenas o mais recente regime autoritário). Nesse caso, o esquecimento das violações de direitos humanos é a pior opção em termos de aprendizagem social, porque uma sociedade que não se lembra de seus episódios mais violentos, também não aprende com esses episódios e não busca evitar sua repetição.

Contudo, exatamente por consistir em elemento constitutivo do Estado democrático de Direito, a responsabilização por violações de direitos humanos não se confunde com vingança ou estratégia para eliminação de determinados atores da esfera pública.

Nesse sentido, usando um exemplo recente de abusos em relação à responsabilização no contexto democrático, há um aprendizado possível com a Lava Jato, considerada como um dos elementos-chave para o crescimento de movimentos que defendem o fim de instituições constitutivas da democracia brasileira, como o STF. Ao contrário do que fora observado na operação, o Judiciário não deve e não pode ser utilizado como ferramenta de lawfare para se alcançar fins políticos, em detrimento do respeito às garantias constitucionais. Assim, a responsabilização defendida aqui pressupõe, sempre, a observância ao devido processo legal, como garantia de justiça.

A necessária responsabilização de participantes dos atos antidemocráticos

Países que tiveram sucesso com a responsabilização em perspectiva transicional compartilham entre si a apuração das violações praticadas nas mais diversas instâncias, ou seja, de forma holística. Ademais, tal formato é recomendado por especialistas no campo, como sendo o mais eficaz no que diz respeito à não repetição.

Sendo assim, apuração e responsabilização efetivas devem passar por todos aqueles envolvidos com as violações praticadas. Mais do que responsabilizar os atores que praticaram os atos, é necessário atentar aos líderes – práticos e intelectuais –, financiadores, apoiadores e outros que auxiliaram por comissão ou omissão, nos termos da lei.

Inicialmente, quanto àqueles presentes em Brasília, caso constatada a responsabilidade, as condutas praticadas se enquadrariam, para além da reparação civil (independente da criminal), a diversos tipos do Código Penal (CP), como o crime de dano (artigo 163), incluindo os artigos 359-L e 359-M do Título XII, Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, do CP – ambos previstos na modalidade tentada. De forma similar, aplicar-se-ia o disposto na Lei 12.850/2013 que define o tipo penal de organização criminosa, se restar comprovado que agiram estruturalmente ordenados.

De forma similar, seria possível apurar a responsabilização – cível e criminal – do ex-presidente Jair Bolsonaro. Na esfera penal, a responsabilização perpassa o disposto nos artigos 359-L 359-L e 359-M do CP, em razão de atos e fatos que se acumularam ao longo de seu mandato e vêm sendo trazidos à luz ao longo da redação deste texto.

Bolsonaro, além de ter estado em várias manifestações que pediam intervenção militar e a volta do AI-5, declarou que teríamos “um problema pior que os Estados Unidos” caso o voto impresso não fosse implantado. O então presidente chegou a se reunir, em julho de 2022, com embaixadores no intuito de desacreditar o processo eleitoral, além de atacar ministros do TSE, passando mais uma mensagem à sua base de apoiadores. Por fim, o ex-presidente não reconheceu formalmente o resultado da eleição; sequer transmitiu a faixa presidencial à Luiz Inácio Lula da Silva.

Mais evidências de uma estrutura organizada e de um ato premeditado vieram à luz ao longo da semana, com o início das investigações. Ao cumprir mandado de busca e apreensão na casa do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres – com prisão determinada pelo STF –, policiais federais encontraram uma minuta de decreto que, na prática, estabelecia um golpe de Estado. A minuta compartilhava manifestos aspectos retóricos de comparação com Atos Institucionais da ditadura.

Se, por um lado, o ataque à praça dos Três Poderes causou danos à democracia brasileira e um significativo dano patrimonial, por outro, é possível falar em mais um possível prejuízo: o extravio de documentos e HDs contendo documentos oficiais. Mesmo ainda não tendo sido divulgado o provável conteúdo desses documentos, o fato em si levanta a possibilidade de pessoas que conheçam os prédios terem cooperado com a invasão.

Esse fato, somado à presença de militares e políticos (e seus parentes) nos acampamentos formados em frente a quartéis-generais, que demandavam um golpe de Estado, leva ao questionamento sobre o envolvimento desses com os atos antidemocráticos do dia 8.

Daí a necessidade de ampla investigação desses atores para averiguar essa participação, que, se comprovada, deve necessariamente levar à responsabilização por tentativa de golpe de Estado. Caminhos para a apuração da responsabilidade desses atores também foram propostos por um dos autores em artigo no JOTA.

Outra importante investigação diz respeito à atuação do procurador-geral da República (PGR), que estaria atrasando a atuação do Ministério Público em face dos grupos que promoveram os atos golpistas. Importante frisar que não possui qualquer embasamento jurídico a alegação do PGR de que a atuação contra os atos golpistas levaria a uma violação do direito de livre manifestação. Isso resta evidente, pelo simples fato de que mesmo a pretensa existência de um direito não impede a apuração da violação de outros direitos – incluindo aqui a tentativa de golpe de Estado. Atos antidemocráticos não configuram liberdade de expressão. Assim, é imperativo que todos os fatos sejam apurados.

Por fim, é necessário atentar para o papel de outros atores que apoiaram e financiaram os movimentos – em um paralelo claro com diversas empresas que apoiaram o regime militar de 1964-85. Na perspectiva de veículos de mídia que apoiaram a tentativa de golpe, para citar um exemplo, a rede Jovem Pan já está sob investigação pelo MPF, por sua conduta ao longo dos últimos anos no sentido de incitar abertamente atos democráticos e de disseminar desinformação a respeito do funcionamento das instituições brasileiras.

Em relação à responsabilização civil desses partícipes – lideranças, mentores, apoiadores, financiadores – já foram iniciadas ações visando a garantia de uma possível reparação. Neste sentido, após sua decisiva atuação inicial no domingo, a Advocacia-Geral da União (AGU) solicitou, com toda a presteza, o bloqueio de contas de mais de 52 pessoas e sete empresas envolvidas no financiamento dos atos golpistas – pedido prontamente atendido pela Justiça Federal de Brasília.

Conclusão

Historicamente, a impunidade tem consequências catastróficas no Brasil. Se focarmos apenas em ações militares no último século, é possível identificar uma série de violações perpetradas por indivíduos que não foram responsabilizados por suas ações anteriores – incluindo diversos levantes e tentativas de golpes ao longo do século.

Dentre centenas de exemplos, alguns são notórios, como o do general Olympio Mourão Filho. O autor do Plano Cohen, que justificou o golpe do Estado Novo em 1937, absolvido em 1955, alcançou o generalato no ano seguinte e, oito anos depois, deflagrou o golpe de 1964. A história de Mourão Filho possui paralelos claros com outro caso mais recente, de um “mau militar” que, após ser absolvido de um plano terrorista contra o Exército, se tornou um político saudoso da ditadura, um presidente autoritário e, mais recentemente, o possível líder de uma tentativa de golpe de Estado.

De tal forma, partindo da perspectiva transicional de responsabilização, se faz imperativa a continuação da apuração da responsabilidade de todos aqueles envolvidos nos atos de 8 de janeiro – por ação ou omissão. Mais do que responsabilizar aqueles que se encontravam em Brasília, é necessário apurar a responsabilidade das lideranças, mentores, apoiadores, financiadores e outros partícipes dos atos de terror, visando coibir a prática futura de tentativas de ruptura institucional e garantir a retribuição à sociedade brasileira.

Artigo publicado originalmente no Jota.

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