Por Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Aury Lopes Jr.
Dia 8 de janeiro de 2023 ficará marcada como uma das páginas mais tristes da história brasileira. A invasão e destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e da sede do Supremo Tribunal Federal constituiu uma tentativa (frustrada) de aniquilamento do modelo democrático. Mas também constituiu uma tentativa (bem-sucedida) de humilhar a imagem do país perante a comunidade internacional, de subjugar os símbolos da pátria e de achacar nossa moral cívica.
A gravidade dos atos merece uma atuação diretamente proporcional das instituições responsáveis pela investigação, acusação e julgamento dos crimes cometidos.
Mas aqui se faz necessário fazer a primeira ressalva: o processo penal jamais pode ser vilipendiado. Em um Estado Democrático de Direito não há espaço para revanchismos, excessos ou violações das regras processuais. As regras do devido processo penal valem para todos e sempre, nunca é demais recordar.
Dentre os possíveis crimes cometidos pelos extremistas estão o dano qualificado, crimes contra o patrimônio nacional, associação criminosa e, principalmente, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L, do CP, cuja pena é de 4 a 8 anos) e de tentativa de golpe do Estado (artigo 359-M, do CP, com pena de 4 a 12 anos).
Perceba-se que os últimos dois são considerados crimes de atentado. Assim, o crime se caracteriza simplesmente com a “busca” de abolir violentamente a democracia ou o “empenho” para depor o governo legítimo. O delito se consuma a partir do momento em que se inicia a tentativa típica.
Pelo que se viu, desde manifestações públicas de anos anteriores — mas principalmente nos dias que antecederam os atos —, os criminosos tinham a intenção declarada de remoção do governo eleito, inclusive com pedidos expressos de inversão da ordem democrática. O dolo estava enunciado nas páginas de internet, redes sociais, grupos de mensagens do WhatsApp e até nas faixas e cartazes carregados.
Frente essas considerações, tem-se discutido sobre a eventual responsabilidade criminal do antigo mandatário brasileiro, tendo alguns juristas indicado que ele teria cometido um crime na modalidade omissiva. Todavia, deve-se verificar, pelo aspecto penal, as categorias de autoria e participação dos crimes. Primeiramente, o ordenamento jurídico pátrio admite a responsabilização do partícipe, ou seja, aquele que não comete diretamente o fato típico, mas que instiga ou atua como cúmplice.
De acordo com o Código Penal, a instigação se materializa quando o sujeito cria na mente do executor do fato a ideia criminosa, a estimula ou mesmo a reforça. Na realidade, qualquer meio de influenciar a vontade do criminoso resta abarcada na figura do partícipe. É aquilo que se chama participação moral.
Por outro lado, a cumplicidade se refere àquele que auxilia materialmente para o cometimento do delito. Como os que emprestam veículos, armas ou outros materiais para o intento criminoso. Também está prevista a cumplicidade por omissão, quando se tem o dever de agir para evitar o delito e, ainda assim, o agente se omite.
Considerando o período desde que a Lei 14.197/2021 entrou em vigor [1], há inúmeras manifestações de Jair Bolsonaro no sentido de atacar as instituições, bem como, principalmente, de inflamar seus apoiadores, inclusive com ameaças expressas aos demais Poderes e desprezo ao resultado das eleições. Tais fatos, facilmente presenciados pela imprensa e pelo público, podem ser considerados como elementos indiciários que, em conjunto com os demais elementos que sejam produzidos durante o inquérito policial, poderão esclarecer a eventual participação do ex-presidente nos aludidos atos.
Uma investigação responsável poderá descobrir (ou rechaçar), a participação moral de Bolsonaro, ou seja, se, de alguma maneira ele instigou a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito ou se instigou a tentativa de depor o governo legitimamente constituído. Assim, a polícia judiciária precisará averiguar as condutas do ex-presidente, inclusive com a análise de dados telefônicos, mensagens, acesso a dados digitais e virtuais [2], verificação de documentos, realização de interrogatório, oitiva de testemunhas (inclusive daqueles que executaram os atos para examinar se foram, de fato, influenciados).
Após a investigação, em havendo justa causa, o Ministério Público oferecerá uma denúncia. Já no âmbito do processo, a acusação terá que provar, além da dúvida razoável, a participação do ex-presidente. O direito de um julgamento justo é um princípio basilar da democracia que não pode, jamais, ser afastado, independentemente da gravidade do crime que se julga.
E aqui entra a segunda ressalva: nas últimas décadas o Direito Penal tem conquistado um protagonismo indevido, como se fosse a panaceia para a redução da criminalidade. Apesar disto, a criminologia — também há décadas —, comprovou que o aumento da criminalização apenas alimenta o ciclo de violência.
Assim, o Direito Penal deveria funcionar como ultima ratio, agindo apenas como último recurso, bem como deveria ser utilizado somente para proteção dos valores considerados como mais relevantes para a vida em sociedade. E, certamente, um desses valores essenciais é a democracia. Já pelo âmbito do sistema penal, reconhece-se que punir é necessário, aliás, é civilizatório — desde que seja feito dentro das regras do jogo [3]. Portanto, é caso sim de intervenção penal, pois o ataque à democracia e suas instituições, sem dúvida alguma, constitui a violação de bem jurídico relevantíssimo e que exige a intervenção penal para sua proteção e manutenção.
Enfim, apesar de ter sido vítima, o Estado Democrático de Direito tem uma oportunidade de reforçar perante toda sociedade seus valores. E isso deve ser feito com uma investigação séria, uma produção probatória abrangente e uma tramitação processual justa, imparcial e que respeite todas as garantias penais e processuais. Apenas assim a punição será legítima, justa e transmitirá uma forte mensagem para a sociedade afetada pelo crime e fortalecerá a democracia.
Não é porque ocorreu uma tentativa criminosa de aviltar a democracia, que o processo penal de responsabilização dos criminosos transgredirá os direitos e garantias constitucionais. O Estado Democrático de Direito exige a proteção absoluta aos direitos de todos, até dos inimigos da própria democracia.
[1] Pelo princípio da irretroatividade da lei penal, os atos cometidos antes da entrada em vigor da lei não poderão ser objeto de responsabilização.
[2] Claro que a quebra de sigilo fiscal, telefônico e de dados somente poderá ser realizado com a respectiva autorização judicial.
[3] “Processo Penal pop obriga uma nova abordagem de ensino“, publicado em 5 de agosto de 2016.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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