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Bolsonaro usa perdão para substituir STF como tribunal de absolvição, diz criminalista

Bolsonaro usa perdão para substituir STF como tribunal de absolvição, diz criminalista

Presidente de instituto criminal afirma que indulto ao deputado Daniel Silveira configura desvio de poder e viola a Constituição

Por Flávio Ferreira

O presidente Jair Bolsonaro (PL) buscou tomar o lugar do STF (Supremo Tribunal Federal) como instância de absolvição ao conceder indulto ao deputado federal Daniel Silveira, diz a advogada Marina Coelho Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

Para a criminalista, essa conduta configura desvio de poder e viola a Constituição.

“O arcabouço do indulto foi usado agora como um palanque político, de eleição, e como uma afronta às instituições do Brasil”, afirma.

A advogada diz que o indulto individual tem origens em situações humanitárias, e tal característica não está presente no caso do deputado. Ela afirma que as motivações de defesa da liberdade de expressão e do equilíbrio entre Poderes apresentadas por Bolsonaro não devem ser aceitas como justificativas válidas, e que o indulto não deve levar à interrupção do processo contra o congressista.

“O indulto não extingue o processo, extingue a pena de prisão”, afirma Marina. “Não há nenhum efeito imediato, a meu ver, a não ser criar um tumulto jurídico e político.

O decreto do presidente da República que concedeu o perdão ao deputado Daniel Silveira está de acordo com a legislação ou contém ilegalidades? A graça, que é o indulto individual, e o indulto coletivo têm uma história, não foram criados agora.

A razão de ser desses instrumentos é o caráter humanitário, a questão individualizada daquela pessoa, o porquê de ela não poder cumprir a pena de prisão. Vamos imaginar um caso em que uma pessoa tem uma doença grave ou terminal. Esses sim são casos de concessão de graça.

O indulto individual concedido pelo presidente não tem caráter humanitário, em primeiro lugar. Ele está sendo usado numa perspectiva política e como uma via de suposta revisão da decisão do STF. Há um desvio de poder nesse ato administrativo e por isso ele é inconstitucional.

A medida do presidente Bolsonaro é inédita no direito brasileiro? Advogo há 20 anos e nunca vi algo assim. Não conheço caso de concessão de graça para alguém numa característica tão pessoalizada quanto essa. O arcabouço do indulto foi usado agora como um palanque político, de eleição, e como uma afronta às instituições do Brasil.

Em seu decreto, o presidente invoca a defesa da liberdade de expressão e do equilíbrio entre os Poderes, sugerindo que poderia corrigir excessos do STF. Como vê essas justificativas? Vejo como um desvio de finalidade do ato administrativo. O presidente está se imiscuindo de forma ilegítima, irracional e inconstitucional no poder do STF. Na verdade, ele está dizendo que vai corrigir uma decisão do STF. O Executivo não tem poder de fazer essa revisão.

O presidente citou como precedente um voto do ministro do STF Alexandre de Moraes favorável a um indulto coletivo concedido em 2017 pelo então presidente Michel Temer (MDB). Na ocasião, Moraes escreveu que “não se pode trocar o subjetivismo do chefe do Executivo pelo subjetivismo de um outro Poder”. A lógica desse voto se aplica ao indulto concedido por Bolsonaro? Não. O indulto do Temer tinha um caráter coletivo, tinha uma justificativa que era específica em relação à extinção da pena e tinha aspectos humanitários. No caso de Bolsonaro, a motivação não está de acordo com as regras formais. Ele motivou como se fosse uma instância revisora.

Se o indulto for considerado válido, ele pode ser aplicado imediatamente, mesmo que o processo ainda não tenha terminado uma vez que o deputado ainda pode recorrer ao próprio STF? Não. O indulto não tem nada a ver com o processo, tem a ver com a execução da pena de prisão. Ainda pode haver mudanças na pena. O indulto só poderá valer após o trânsito em julgado, ou seja, quando não houver mais recursos. O indulto não extingue o processo, extingue a pena de prisão. Então na verdade o processo tem que continuar. Não há como rasgar tudo e dizer que acabou. Não há nenhum efeito imediato, a meu ver, a não ser criar um tumulto jurídico e político.

Caso seja considerado lícito, o perdão ao deputado terá efeito somente sobre a pena de prisão ou atingirá também outras punições decorrentes, como a inelegibilidade? O indulto individual não passa uma borracha na condenação, ele vai continuar sendo um condenado. O presidente não pode absolver alguém, se entender que é o caso. Não existe isso. Essa é a confusão do decreto. O decreto dá a entender que o presidente teria um poder, seria uma instância superior de revisões jurídicas. Ele não tem isso. O que o presidente tem é um poder de extinguir uma pena de prisão.

Qual a sua avaliação sobre a pena imposta ao deputado pelo STF? A punição foi adequada ou excessiva? A gente precisa entender que o direito penal tem um caráter pedagógico e simbólico, mas não pode ter um caráter de expiação. Então o que nesta pena se caracterizar como expiação, poderia ser uma pena menor. Se a gente considerar que no Brasil a pena do homicídio simples é de 6 a 12 anos, e o deputado foi punido com de 8 anos e 9 meses, a gente pode pensar que dentro do sistema essa é uma pena altíssima.

Uma pena excessiva do STF poderia justificar o perdão presidencial? A quantidade da pena não é um argumento de caráter humanitário. Se formos pensar no caráter humanitário, essa pena nem é tão alta, pois no Brasil temos a progressão de regime e a pessoa vai ficar um tempo menor no regime fechado.

Quais são os possíveis cenários a partir de agora? O que eu vejo é que o processo vai continuar. Há presunção de inocência até que o processo seja encerrado. Não há como indultar alguém que ainda é inocente, que não foi condenado em definitivo.

Como avalia esse episódio na já conturbada relação entre o presidente e o STF? Esse embate institucional vai corroendo as estruturas da nossa democracia, isso é muito preocupante. Estamos apagando incêndios e pouco construindo pela nossa democracia. Acabamos ficando com muitas incertezas que são muito perigosas. A campanha para tirar a credibilidade do STF também é muito ruim. Muito do nosso trabalho de defesa dos direitos humanos e dos direitos dos cidadãos é feito lá. Essencialmente a gente tem que chegar ao STF para que os direitos dos cidadãos sejam reconhecidos. A credibilidade do STF e uma instância com esse poder são essenciais.

Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.

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