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Crimes de repercussão e comoção nacional e o pânico da lei. Por quê?

Crimes de repercussão e comoção nacional e o pânico da lei. Por quê?

Dois crimes recentes — o assassinato de um petista por um bolsonarista, em Foz do Iguaçu (PR), e o estupro de um médico contra sua paciente, na Baixada Fluminense — provocaram comoção. Como não raro acontece em seguida a crimes que tomam as manchetes dos noticiários, hoje multiplicados pelos efeitos derivados das redes sociais, surgem, em tempo real, projetos de lei propondo aumentar as penas desses delitos, quando não para criar novos tipos penais, tais quais poções mágicas aptas a solucionar, para todo o sempre, questões jurídico-criminais que atormentam o cotidiano do povo.

Em julho, um policial penal federal, apoiador do presidente Jair Bolsonaro, invadiu o aniversário de um tesoureiro do Partido dos Trabalhadores em Foz do Iguaçu e, iniciando troca de tiros, matou-o [1]. Ele está detido [2] e processado por homicídio qualificado por motivo fútil e produção de perigo a terceiros [3].   

No mesmo mês, um anestesista foi preso depois de ser filmado estuprando sua paciente em centro cirúrgico quando ela já estava apta a ter seu filho. Ele pedia que os maridos deixassem a sala, o que é defeso (Lei 11.108/2005). Então, aplicava altas doses de sedativo para estuprá-las sem que percebessem [4], bem como os profissionais de saúde que trabalhavam no evento. O médico segue encarcerado e processado por estupro de vulnerável [5].

O Legislativo tem a obrigação de ouvir os anseios sociais para compreender se deve ou não legislar; esta é a essência do Poder. Porém, sem afogadilho, debatendo e estudando as propostas de alteração legal, juntamente com a comunidade jurídica e a sociedade. Por desventura estiverem os parlamentares mais preocupados em dar imediato feedback às “vozes das ruas”, o que provém com mais frequência em períodos eleitorais, é enorme o risco de gerar distorções legislativas, com cruéis sequelas sociais em curto prazo.

Não fugindo à “magia”, foi o que sucedeu. Dois dias após o assassinato, os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Alexandre Silveira (PSD-MG) apresentaram projetos visando aumentar a pena de homicídio por razões políticas ou ideológicas [6]. As propostas criam a qualificadora para o perpetrado “por motivo de ideologia, intolerância ou inconformismo político, ou com o objetivo de interferir no processo político eleitoral ou de impedir o livre exercício de mandato eletivo” (PLS 1.962/2022, de Costa), e do praticado “por questões de intolerância política ou partidárias, ou outro motivo relacionado a divergência de opinião” (PLS 1.961/2022, de Silveira). Às penas vão 12 a 30 anos. Tirante o apelo eleitoral, para que a proposta? Está no Código Penal, desde 1940, a qualificadora para homicídio cometidos por motivo fútil.

Passados dois dias do estupro, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) protocolou projeto para aumentar a pena para os crimes contra a dignidade sexual (PLS 2.016/2022) [7], estabelecendo também ser estupro de vulnerável a “prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso por médico ou qualquer outro profissional da área de saúde em face de paciente em situação de atendimento médico, clínico ou hospitalar”. A pena — de 8 a 15 anos — será aumentada da metade até dois terços se for por profissionais da saúde no exercício funcional. Abstraindo-se o casuísmo eleitoral, se o pretendido é preservar pessoas destes tipos de abusos, por que só os restringir aos da saúde?  

No Brasil, o endurecimento penal como “resposta” aos crimes de alta retumbância é corriqueiro. Acontece que, só os que alcançam as crônicas jornalísticas têm este (erradíssimo) tratamento. Os transcorridos nos cantões brasileiros ou nas comunidades periféricas, inclusive as das grandes cidades, desde que não iluminados pelos holofotes das imprensa e redes sociais, ou não são investigados (apenas 37% dos homicídios são esclarecidos; no Rio, só 16% [8]), ou sequer chegam à ciência dos cidadãos. Na contramão, “apagados-vitimados” nunca despertam o interesse dos Poderes, até do Ministério Público. Estes só convivem com as “solas das botas da segurança pública”, e seguem sem ter noção em que portas têm de bater para que as mais ínfimas assistências estatais lhes sejam prestadas; são direitos e garantias das pessoas humanas, não favores.

Ainda por amostra, em 1986, uma jovem da classe média-alta do Rio de Janeiro foi sequestrada, estuprada e morta por dois porteiros do seu edifico residencial; eles foram condenados a penas altíssimas. O crime insuflou os ânimos das pessoas. Passeata contra a violência organizada por alunos da universidade em que ela estudava saíram às ruas, acompanhados por professores, à frente o reitor, e milhares de cidadãos, a exigir “socorro” ao governo federal; defensores da pena de morte presentes.

Sem tardar, o presidente José Sarney encaminhou ao Congresso projeto que alterava a Lei Fleury. Esta modificara, em 1973, o CPP para permitir que réus primários e com bons antecedentes fossem processados em liberdade, mesmo se condenados em primeira instância e pendente a apreciação de recursos — posição que prevaleceu, foi ampliada pela Constituição e referendada pelo STF [9]. A de Sarney, que não vingou, estabelecia que acusados de crimes como homicídio e estupro deveriam ser presos antes do julgamento [10].

Indignado, o ministro Evandro Lins e Silva, criticando Sarney, exonerou-se da presidência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Em sua comunicação verberou que o problema da lei era o nome do delegado Sérgio Fleury, envolvido em torturas e execuções na ditadura militar. Fora o apelido, ela representou “inegável avanço em tema de política criminal” [11].

Pregou cautela após crimes de comoção social, alertando que a reação há de ser realizada “de modo racional, de acordo com a ciência e a doutrina, e não de modo emocional, criando uma legislação que nos parece desnecessária, que vai atingir quem não deva ser segregado até que sua culpabilidade seja reconhecida pela Justiça” [12].

Contudo, a partir deste episódio planta-se, na Constituinte, o espírito, que infelizmente floresceu, de se parir a figura dos crimes hediondos, que foram havidos inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia pela Constituição. É uma jabuticaba. Há crimes mais ou menos graves e punidos com penas proporcionais à sua classificação e participação do réu. Pronto.  

Em 1990, frente a ondas de dramáticos sequestros no eixo Rio-São Paulo, a toque de caixa aprovou-se a Lei dos Crimes Hediondos. Passou-se a considerar hediondos os delitos de latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro e na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte e de genocídio. Foram a eles equiparados o tráfico de drogas, tortura e terrorismo. As penas seriam cumpridas integralmente em regime fechado — parte declarada inconstitucional pelo STF [13]. Dois anos depois, assassinato de colossal retumbância no Rio de Janeiro foi o estopim para o alargamento da lei. O crime ofuscou o noticiário sobre a renúncia do presidente Collor, e embasou campanha que, seguidamente à colheita de mais de 1,3 milhão de assinaturas, redundou numa emenda popular, com o fim de incluir o homicídio qualificado no rol dos hediondos; a iniciativa popular foi vitoriosa, e os homicídios qualificados desde 1994 são hediondos. Devido ao então inusual meio de a sociedade instar o Legislativo, outros vieram na esteira — vide as “Dez medidas contra a corrupção” firmadas por 1,74 milhão de pessoas. Para ser apresentada à Câmara dos Deputados, a proposta há de ser referente a apenas um assunto e conter a subscrição de, no mínimo, 1% do eleitorado (1,5 milhão de pessoas[14]) e, em pelo menos cinco estados, ser apoiada por 0,3% dos eleitores. As coletas de assinaturas, antigamente, eram realizadas de várias formas, como em eventos artísticos públicos. Inebriados pelo espetáculo e candentes apelos, cidadãos assinavam os documentos sem conhecer seu conteúdo, tampouco suas consequências, as quais sempre alvejam os mesmos: pretos, pobres e periféricos. Com a comunicação moderna, aqueles podem atingir, em dias, o mínimo de firmas exigidas.

Outra “panicada lei” é a que quintuplicou a pena máxima para a falsificação de medicamentos — de três para 15 anos. Esta adveio em consequência ao escândalo das “pílulas de farinha”, placebos equivocadamente vendidos como anticoncepcionais, que levaram a gestações não planejadas [15]. O STF já acordou ser a apenação desproporcional [16].

Faz pouco germinou o substitutivo, já aprovado [17], do deputado Neucimar Fraga (PP-ES) ao PL 5.365/2020, de Sanderson (PL-RS), que prevê a criação do crime batizado “novo cangaço”, quando pessoas fortemente armadas exercem domínio sobre a cidade e impedem a reação das forças de segurança [18]. Se prosperar, já nascerá hediondo e com pena de até 40 anos, se resultar em morte.

Em fecho, dias atrás surgiu o PL 6.444/2019, do deputado Júlio Ribeiro (Republicanos-DF), que quer criar o estelionato sentimental, definido quando há alguma promessa sobre uma relação afetiva em troca da entrega de valores ou bens pela vítima, com pena de dois a seis anos [19], enquanto o presidente Bolsonaro pretende transformar em hediondo o roubo de celular [20].

A participação da sociedade é republicana, mas o Legislativo não pode ser refém de situações emocionais. Emparedado pela opinião pública, sem exceção por ações punitivistas, organizou-se, em 2003, o Movimento Antiterror, do qual fui seu primeiro coordenador-geral.

Veio para peitar “legislações de pânico” — PLs provindos em contrapartida a crimes de repercussão e que restringem direitos e garantias fundamentais [21]. O mote foi o PL 5.073/2001 e o seu substitutivo que, alterando a Lei de Execução Penal, instituiu o regime disciplinar diferenciado, com o isolamento celular de até 720 dias; “regime da desesperança”, no verbo de René Dotti em carta à atual ministra Maria Thereza de Assis Moura [22]. Em junho de 2003, caminhávamos do escritório de Márcio Thomaz Bastos para as Arcadas, onde seria lida a carta de princípios do movimento [23], quando o estudante Rogério Taffarello me ligou informando ter sensibilizado o deputado Hélio de Oliveira Santos (PDT) a ler o manifesto na Câmara. Estes atos aumentaram a visibilidade para o Movimento Antiterror, e propiciaram que projetos retrógrados não fossem votados no “fogo da paixão”.

Leis têm de vir, se necessárias, calcadas pela racionalidade técnica-científica-jurídica. Leis são para salvaguardar o Estado democrático de Direito. Leis não são para “palanquear parlamentares-show”. O Congresso não tem de temer a “voz da rua”. As pessoas não têm de sentir pânico das leis. Democracia, sempre!


[1] Laudo mostra que policial bolsonarista atirou 3 vezes contra tesoureiro do PT, que revidou com 13 disparos. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2022/07/26/caso-marcelo-arruda-laudo-mostra-que-apoiador-de-bolsonaro-atirou-3-vezes-contra-tesoureiro-do-pt-que-revidou-com-13-disparos.ghtml. Acessado em: 27/7/2022.

[2] Justiça alega proximidade das eleições e nega pedido para revogar prisão preventiva de Guaranho. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2022/08/13/justica-alega-proximidade-das-eleicoes-e-nega-pedido-para-revogar-prisao-preventiva-de-guaranho.ghtml. Acessado em: 16/8/2022.

[3] José da Rocha Guaranho vira réu por assassinato de tesoureiro do PT. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-07/jose-da-rocha-guaranho-vira-reu-por-assassinato-de-tesoureiro-do-pt. Acessado em: 27/7/2022.

[4] Sedação, cortina e retirada de acompanhantes: como agia o anestesista preso por estupro. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/sedacao-cortina-e-retirada-de-acompanhantes-como-agia-o-anestesista-preso-por-estupro.shtml. Acessado em: 27/7/2022.

[5] Justiça recebe denúncia contra médico anestesista preso por estupro de grávida durante o parto. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/98588986. Acessado em: 27/7/2022.

[6] Senadores apresentam projetos para qualificar homicídio por motivo de ideologia ou posição política. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/senadores-apresentam-projetos-para-qualificar-homicidio-por-motivo-de-ideologia-ou-posicao-politica/. Acessado em: 27/7/2022.

[7] Senadores condenam crimes sexuais em ambiente hospitalar. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/13/senadores-condenam-crimes-sexuais-em-ambiente-hospitalar. Acessado em: 27/7/2022.

[8] Por que só 37% dos homicídios são esclarecidos no Brasil? Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,so-1-em-cada-3-homicidios-e-esclarecido-no-brasil-taxa-e-menor-do-que-media-mundial,70004125207. Acessado em: 17/8/2022.

[9] Voto de Toffoli faz Supremo suspender a execução antecipada da pena. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-07/voto-toffoli-derruba-entendimento-prisao-instancia. Acessado em: 17/8/2022.

[10] Réu primário perde privilégio e pode ser preso antes de julgado. O Globo, 14/6/1986, p. 2.

[11] Disponível em: http://sacerj.com.br/images/boletins_sacerj-jan-abr-08.pdf, p. 21. Acessado em 19/8/2022.

[12] Idem, p. 17.

[13] Condenado por crime hediondo tem direito a progressão de regime. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2006-fev-23/condenado_crime_hediondo_progressao_regime. Acessado em: 28/7/2022.

[14] Você sabe o que é uma Lei de Iniciativa Popular? Disponível em: https://www.colab.re/conteudo/lei-iniciativa-popular. Acessado em: 17/8/2022.

[15] Há quase uma década, o caso da pílula de farinha. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/geral,ha-quase-uma-decada-o-caso-da-pilula-de-farinha,77950. Acessado em: 28/7/2022.

[16] STF anula pena de dez a 15 anos para importação de remédio sem registro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-24/stf-anula-pena-10-15-anos-importacao-remedio-registro. Acessado em: 28/7/2022.

[17] Câmara aprova medidas para combater e punir “novo cangaço”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/901340-camara-aprova-medidas-para-combater-e-punir-novo-cangaco/. Acessado em: 4/8/2022.

[18] Câmara aprova medidas para combater e punir “novo cangaço”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/901340-camara-aprova-medidas-para-combater-e-punir-novo-cangaco/. Acessado em: 4/8/2022.

[19] Câmara aprova projeto que cria o crime de ‘estelionato sentimental’. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/08/04/camara-aprova-projeto-que-cria-o-crime-de-estelionato-sentimental.ghtml. Acessado em: 14/8/2022.

[20] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/felipe-moura-brasil/2022/08/05/bolsonaro-so-quer-tornar-hediondo-crime-incomum-entre-politicos.htm. Acessado em 21/8/2022.

[21] DOTTI, René Ariel. Movimento Antiterror e a missão da magistratura. Paraná: Juruá, 2005, p. 15-26.

[22] Idem.

[23] Conheça a Carta de Princípios do Movimento Antiterror. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2003-jun-20/conheca_carta_principios_movimento_antiterror?pagina=2. Acessado em: 17/8/2022.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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