Por Magda Biavaschi, Luciana Lucena Barreto e Ana Paula Martins
Pontos do texto evidenciam falácia dos argumentos de seus proponentes, suas inconstitucionalidades e inconsistências
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Os economistas clássicos mantém ainda, contra a evidência dos fatos, no interesse do capitalismo moderno, a crença nas virtudes da liberdade de trabalho, não admitindo regras, nem normas legais, que fixem as bases do contrato entre o empregador e o empregado […]
O homem é livre – argumentam; tem o direito de vender o seu trabalho pelo preço e nas condições que quiser. Mas, na vida industrial moderna, essa liberdade de trabalho só tem gerado a opressão e a miséria, a exploração do operariado e seu rebaixamento progressivo. Hoje, já ninguém contesta quanto influi a inexorável lei da concorrência na remuneração do trabalho operário – e isso basta para desfazer o encanto ilusório da ‘liberdade do trabalho’ (Apontamentos de Direito Operário, Evaristo de Moraes, 1905).
Em 2021, mais de cem anos depois de Evaristo de Moraes ter clamado por um sistema legal para o trabalho que contenha a “inexorável lei da concorrência”, Luiz Gonzaga Belluzzo, em Angústias Individualistas, mostra que o capitalismo, agora globalizado, fez recrudescer a concorrência entre Estados, empresas e indivíduos, exacerbando três tendências inscritas em seu DNA: i) mercantilização de todas as esferas da vida, em suas múltiplas dimensões; ii) universalização da concorrência; e, iii) concentração do poder econômico e político. Nesse cenário, indivíduos “livres”, “empresários de si próprios”, talvez convencidos de sua liberdade, “…entregam seu destino aos grilhões da concorrência e às ilusões da meritocracia” e, na luta pela sobrevivência, “acomodam-se aos suplícios da exclusão e da desigualdade”[1].
No Brasil, o legado da reforma trabalhista de 2017, condicionada à retirada da “rigidez” da legislação e à redução da “insegurança jurídica”, aprovada sob as promessas de crescimento econômico, geração de emprego, integração dos terceirizados e dos informais, é oposto do propagandeado, realidade que a pandemia da Covid-19 tratou de escancarar e aprofundar. E foi em uma realidade dessa ordem que o governo encaminhou a Medida Provisória 1045/21, instituindo o “Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”. Segundo a Exposição de Motivos nº 106, esse Programa se justifica pelo: término do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, instituído pela Lei nº 14.020/20; permanência da pandemia, com segunda onda de contaminações e nova cepa; e por efeitos na economia, especialmente no desemprego e na informalidade. Os objetivos originários estão no tripé: redução da jornada e dos salários; suspensão temporária dos contratos; pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda custeado com recursos da União.
Este artigo, síntese de Nota Técnica elaborada no âmbito da AJD, ABJD e GT Mundos do Trabalho do CESIT, subscrita por muitas entidades de representação do mundo do trabalho, organizações sindicais, associações, institutos, foca alguns aspectos relevantes dessa MPV, trazendo elementos que evidenciam a falácia dos argumentos de seus proponentes, suas inconstitucionalidades e inconsistências e alguns impactos negativos para as relações de trabalho e para a sociedade brasileira.
A falácia dos argumentos. Mais do mesmo
Sob o pretexto de assegurar trabalho, renda e saúde durante a pandemia da Covid-19, a Medida Provisória originária e os programas introduzidos por emendas acolhidas pelo relator na Câmara dos Deputados ao argumento, entre outros, de estimular o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, na realidade reduz os custos do trabalho via supressão de direitos assegurados, conquistas civilizatórias. A MPV, acaso aprovada pelo Senado, acirrará a concorrência em impensável regresso aos primórdios do capitalismo primitivo, com brutal encolhimento dos direitos conquistados e dos beneficiários do sistema de proteção social ao trabalho, aliás, freios à ação desigualadora do capitalismo, impactando de forma negativa na vida das pessoas, sobretudo das que mais necessitam.
Originariamente, a MP 1045/21 incorpora as diretrizes do Programa Emergencial vigente até 31 de dezembro/2020, previsto na Lei 14.020/20 (conversão da MP 936/20), possibilitando redução de salários proporcional à da jornada ou suspensão temporária dos contratos, com Benefício Emergencial custeado com recursos da União. Os argumentos em sua defesa são, em síntese: enfrentar os impactos da pandemia que, agravada em 2021, impede a retomada da economia; garantir a continuidade das atividades empresariais com manutenção dos empregos viabilizada pelo ajuste entre oferta de mão de obra e demanda das atividades econômicas; adequar e reduzir os custos empresariais. Parte desses argumentos, presentes na defesa à reforma trabalhista de 2017, não se concretizaram, como os anos de sua vigência[2] evidenciam.
Os custos empresariais foram reduzidos. É verdade. Mas quanto à atividade econômica, temos uma economia estagnada, com insuficiente recuperação em torno de 1% ao ano entre 2017 e 2019, incapaz de dinamizá-la. Quanto ao mercado de trabalho, o que a PNAD-C do IBGE mostra é que, ao invés da ampliação do emprego e da incorporação dos desgarrados da proteção social, aumentam a informalidade, o desemprego, a subcontratação, a exclusão, comprometendo a capacidade de consumo das famílias e as decisões de investimento. O emprego com carteira assinada no setor privado que, em 2014, representava 48,9%, caiu para 44,1% em 2019. Já o trabalho “por conta própria” aparece como principal responsável pelas ocupações geradas a partir de 2017: entre 2017 e 2019, o trabalho sem carteira evoluiu em 12,6% e o “por conta própria” 11,5%. Resultados que escancaram o cenário negativo para as relações de trabalho, contrastando com as promessas das reformas liberalizantes, como a trabalhista, que a MPV 1045 radicaliza.
Não restam dúvidas de que a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil em contexto de baixo dinamismo econômico, deteriorado pela crise instalada, sobretudo, a partir de 2016. Não menos certo é que nosso mercado de trabalho é historicamente assimétrico, heterogêneo, pouco estruturado, com altas taxas de desemprego, informalidade e rotatividade, além de baixos salários e desigual distribuição dos rendimentos do trabalho[3], quadro que a reforma trabalhista de 2017 e a pandemia agravaram, com queda dos rendimentos do trabalho e maior fragilização das organizações sindicais.
Na tramitação da MPV 1045 na Câmara dos Deputados, o relator, acolhendo emendas parlamentares, introduziu programas alheios à proposta originária que, além de usurparem os limites legais de uma Medida Provisória, não integram ao sistema de proteção social parcela expressiva da massa trabalhadora, não oferecendo condições de superação das desigualdades e da exclusão que os dados demonstram. Além disso, as experiências e as pesquisas internacionais e nacionais evidenciam que não é reduzindo direitos que essa inserção se dará, mas, sim, dinamizando a economia, como afirmam estudos sobre as Medidas Provisórias 905/19, 927/20 e, inclusive, sobre a 936/20, convertida em lei: Lei 14.020/20. Ao contrário, a redução dos ganhos do trabalho deprime as possibilidades de consumo, com significativo impacto sobre demanda por bens e serviços, prejudicando a própria economia que seus defensores dizem proteger[4].
A MPV 1045 aprofunda a lógica da reforma trabalhista de 2017 ao ampliar o poder discricionário dos empregadores de definirem as regras da contratação e as condições do trabalho, transferindo aos trabalhadores custos e riscos inerentes à atividade empresarial sem efetivar a prometida retomada do crescimento econômico. Sob as premissas falsas de geração e manutenção dos empregos e da renda, modernização da legislação e promoção da segurança jurídica, contribui para destruir a arquitetura normativa dos direitos sociais inscrita pela Constituição Federal de 1988. Fazendo letra morta ao patamar mínimo civilizatório de que trata o artigo 7º da Lei Maior, emerge da desmedida prevalência do poder econômico na relação entre capital e trabalho e, com potencial altamente regressivo, penaliza os mais vulnerabilizados, sobretudo as mulheres e os jovens[5].
A gritante inconstitucionalidade da MPV 1045 e o desrespeito ao decidido pelo STF
Além da ineficácia das proposições normativas previstas para o combalido, assimétrico e desestruturado mercado de trabalho brasileiro, capazes de aprofundar a precariedade das relações laborais e as desigualdades sociais, bem como do fato de estarem fundadas em argumentos falaciosos, desmentidos pelos anos de vigência da reforma de 2017, a medida, tal como aprovada pela Câmara dos Deputados e encaminhada ao Senado, padece de indiscutível inconstitucionalidade formal, afrontando os artigos 1º, caput, parágrafo único; 2º, caput e 5º, caput, e inciso LIV da Constituição da República.
O texto aprovado pela Câmara amplia os objetivos iniciais da MPV, contemplando o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego, Priore, e o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva, Requip. Ainda, promove alterações na legislação trabalhista não limitadas ao período da emergência pública. Essa ampliação representa séria violação à ordem constitucional, atentando contra a democracia. Trata-se de verdadeira burla ao processo legislativo, interditando o amplo debate com a sociedade e suprimindo a necessária submissão das proposições às comissões temáticas de ambas as casas do Congresso Nacional. Ademais, quanto a esse aspecto formal, coloca-se em frontal oposição ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal, STF, no julgamento da ADI 5.127, de Relatoria da Ministra Rosa Weber e acórdão do Ministro Edson Fachin, publicado em 10 de maio/2016, concluindo que a prática de inserir conteúdos temáticos estranhos ao objeto originário de uma MP viola o devido processo de tramitação legislativa e descumpre o compromisso democrático que fundamenta a Constituição da República.
O caráter excepcional das Medidas Provisórias e do procedimento legislativo de conversão em lei decorre da condição de urgência e relevância das matérias tratadas, casos em que o procedimento é simplificado para atender às situações urgentes que demandam regulamentação imediata, não podendo aguardar os trâmites normais da elaboração das leis. Utilizar esse procedimento simplificado para promover profundas alterações no sistema de proteção social ao trabalho, ademais sem vinculação ao objetivo original da Medida Provisória, é inconstitucional, antidemocrático e autoritário.
Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda
Esse Programa reproduz, em linhas gerais, disposições da Medida Provisória 936 que o antecedeu, editada e convertida na Lei 14.020/20, com vigência até 31 de dezembro de 2020. Os objetivos do Novo Programa, enunciados no artigo 2o da MP, visam, segundo o Governo, a: preservar o emprego e a renda; garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais; e, reduzir o impacto social decorrente das consequências à saúde pública decorrentes do coronavírus (Covid-19).
O primeiro aspecto a considerar é o alcance do Programa, destinado aos trabalhadores formais, com registro na carteira de trabalho. Em um país em que, segundo dados da PNAD-C do IBGE, o emprego do setor privado com carteira assinada representava, em 2019, apenas 44,1% do total de ocupações, a ineficácia dos objetivos e a falácia dos argumentos ficam evidentes. Mas há outras considerações. Para a consecução de seus objetivos, a MPV autoriza reduzir a jornada trabalho com proporcional redução de salários, nos percentuais de 25%, 50% e 70%; ou a suspensão dos contratos de trabalho por até 120 dias, em convenção, acordo coletivo ou acordo individual de trabalho, a depender das faixas salariais, com pagamento do Benefício Emergencial. Com isso, deprime a renda do trabalho sem, de fato, assegurar o emprego durante a emergência sanitária, eis que as despedidas sem justa causa são autorizadas substituindo o direito ao emprego (que diz assegurar) por valores pecuniários, ao título indenizatório, proporcionais aos salários que seriam pagos até o final do período da suposta garantia, desvirtuando sua natureza. Trata-se de mais uma falácia, a ser incluída nas falsas ideias apontadas no subitem anterior.
Registra-se que, autorizando ajuste individual entre empregadores e empregados para a redução dos ganhos salariais, a MPV desrespeita o artigo 7º, VI da Constituição que assegura, como direito, a irredutibilidade salarial, salvo acordo ou convenção coletiva. Nesse sentido, adota mesma lógica que fundamentou a reforma trabalhista de 2017: retira a condição de fonte prevalente de direitos assegurados em sistema público de proteção ao trabalho e, inclusive, das normas construídas no campo do garantismo coletivo, atribuindo essa condição, em determinadas situações, ao contrato individual de trabalho. E assim, submete a classe trabalhadora à força bruta do capital, desconsiderando a relevância da regulação pública e desrespeitando a força coletiva das organizações sindicais.
Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva: REQUIP
O Requip, destinado aos trabalhadores com idade entre 18 a 29 anos, aos sem registro na carteira de trabalho há mais de 2 (dois) anos e, ainda, aos de baixa renda oriundos de programas federais de transferência de renda, autoriza contratação por 36 (trinta e seis) meses, sem vínculo de emprego. Torna facultativos os recolhimentos previdenciário e fiscal, com graves prejuízos aos fundos públicos (essenciais para as políticas públicas de transferência de renda e para a seguridade social). Além disso, permite substituir férias por recesso de 30 (trinta) dias, não integralmente remunerado, parcelado em até 3 períodos e prevê que os integrados ao programa não constituem categoria profissional. Daí que os dispositivos do Termo de Compromisso previsto não serão objeto de negociação coletiva, violando princípios constitucionais e convencionais sobre a matéria, além de ferir o diálogo social. Assim, sem direitos trabalhistas e previdenciários, são alijados do sistema de proteção social assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pela CLT.
Essa modalidade prejudica o conjunto da sociedade. Ao inserir os destinatários do programa em forma de contratar mais barata, descartável, insegura, sem os direitos sociais garantidos, contribui para acirrar as assimetrias de um mercado de trabalho historicamente desigual, heterogêneo e desorganizado, ampliando os graves problemas de inserção social que a reforma trabalhista de 2017 tratou de aprofundar. Além de legitimar a discriminação negativa via contrato de trabalho, promovendo a clássica distinção entre good jobs e bad jobs, fortalece o poder do capital em espúria concorrência entre a massa trabalhadora, na contramão de uma sociedade mais justa e igualitária. E diga-se que a retirada, aliás, em boa hora, pelo relator na Câmara dos Deputados (subemenda de plenário), do artigo 66 que permitia que os jovens em situação de vulnerabilidade ou risco social, incluídos no Requip, poderiam ser contabilizados para cumprimento da cota de aprendizagem (Lei nº 10.097, de 19 de dezembro/2000), não altera a substância do programa, não afastando sua natureza regressiva, coexistindo os dois sistemas.
Programa Primeira Oportunidade e Reinserção do Emprego: PRIORE
O Priore destina-se à contratação de trabalhadores com idade entre 18 (dezoito) e 29 (vinte e nove) anos, relativamente ao registro do primeiro emprego em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) ou maiores de 55 anos e que estejam sem vínculo formal de emprego há mais de 12 (doze) meses, ressuscitando diversos pontos da MP 905.
A interpretação sistemática dos dispositivos legais permite concluir que um quarto (25%) do total do quadro de empregados da empresa pode ser ocupado por essa via, com rebaixamento de direitos e redução dos custos da despedida, com destaque à redução das alíquotas ao FGTS para percentuais que variam de 2 a 6% e da multa rescisória incidente sobre os valores ao FGTS de 40% para 20%. Ao possibilitar tratamento diferenciado, sobretudo quanto à remuneração, entre jovens ou idosos admitidos ao Priore, introduz tratamento não isonômico, legitimando, mais uma vez, a discriminação negativa via contrato individual e fortalecendo o poder do capital, na contramão dos esforços de construção de um mercado de trabalho mais equânime.
Ataque às Instituições Públicas do mundo do trabalho: Justiça do Trabalho
A MP 1.045, com os acréscimos aprovados pela Câmara dos Deputados, não se satisfaz em desconstituir o sistema público de proteção ao trabalho, precarizando as condições da pactuação da força de trabalho. Ataca as instituições do mundo do trabalho que têm como atribuição fiscalizar a observância e concretizar as normas públicas de proteção ao trabalho, entre elas a Justiça do Trabalho, os sistemas de fiscalização afetos ao Ministério Público do Trabalho e aos Auditores Fiscais do Trabalho. O ataque à Justiça do Trabalho ocorre, de um lado, pela criação de obstáculos ao acesso à Justiça, modificando o sistema de gratuidade; por outro, alterando e tornando ainda mais adverso o processo de jurisdição voluntária para homologação de acordo extrajudicial pela Justiça do Trabalho, instituto inserido na CLT pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista).
A lógica destrutiva que fundamentou a reforma trabalhista de 2017 se faz novamente presente. O sistema de Gratuidade de Justiça fora objeto da Lei 13.467 que alterou a CLT; agora, nova alteração é proposta. Somente terá direito ao benefício a pessoa física pertencente à família de baixa renda, ou que, durante o contrato de trabalho mais recente, mesmo que não esteja vigente, recebeu salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. A gratuidade é estratégica para efetividade da garantia constitucional do amplo acesso à Justiça, no âmbito da Justiça do Trabalho. Nesse sentido, as alterações produzidas pela reforma trabalhista de 2017 e, agora, pela MPV 1045, inviabilizam sua concretude. Aliás, o princípio da gratuidade informa o processo do trabalho, instrumento de realização do direito material. Quando é vedado o acesso à Justiça via obstáculos pecuniários que oneram a judicialização, desvirtua-se não apenas a razão de ser da Justiça do Trabalho, mas impede-se o exercício de direito constitucionalmente assegurado.
O ataque à Justiça do Trabalho prossegue, com alterações à homologação de acordo extrajudicial, instituto, aliás, criado pela reforma trabalhista de 2017. O intuito é o de transformar a Justiça do Trabalho em órgão homologador de acordos entabulados entre empregador e empregado, direta e individualmente, sem assistência sindical e, ademais, com possível quitação ampla e irrestrita às parcelas devidas durante a relação de emprego via chancela judicial. Segundo o texto, na homologação desses acordos as partes detêm autonomia para incluir cláusula de quitação geral do contrato ou das parcelas e valores declarados, competindo ao juiz decidir pela homologação ou não de todo o acordado, sem poder retirar cláusulas nele inseridas. Ainda, no exame do acordo, a Justiça do Trabalho deve analisar apenas a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, com potencial estímulo ao manejo fraudulento da homologação judicial e cerceamento de posterior acesso à Justiça aos que tiveram direitos desrespeitados.
Ataque às instituições públicas: sistemas de fiscalização
Não suficientes os ataques à Justiça do Trabalho, a lei de conversão traz modificações na legislação laboral com impacto negativo na eficácia dos procedimentos de fiscalização do trabalho realizados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho. Entre outras medidas, reintroduz o “Conselho Recursal Paritário” tripartite para apreciar recursos em segunda e última instância administrativa contra decisão que impuser multas por infração, estimulando a politização das decisões e enfraquecendo o poder da administração pública. Traz novos parâmetros para a dupla visita e, entre outras medidas, altera o artigo 627-A da CLT que dispõe sobre o termo de compromisso, importante instrumento utilizado pela fiscalização do trabalho para infrações crônicas e de complexidade ampliada. Pela proposta, poderá ser celebrado por dois anos, prorrogáveis por igual período, prevendo a edição de regulamento para sua lavratura que não competirá à subsecretaria de inspeção do trabalho. Ou seja, os novos parâmetros para fiscalização e autuação criam embaraços à fiscalização e dificultam a aplicação de sanções nos casos de descumprimento da legislação trabalhista. Resta explicito o interesse de limitar o poder fiscalizatório e punitivo dos órgãos de controle, com potencial prejuízo às ações de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, além de fomentar o descumprimento de direitos fundamentais, em especial os atinentes à preservação da saúde e segurança dos trabalhadores.
Barbárie civilizatória está anunciada
A experiência da reforma trabalhista de 2017, nos seus quase quatro anos de vigência, deixa, por um lado, evidentes suas consequências desagregadoras do sistema público de proteção ao trabalho que, com grandes dificuldades, avanços e recuos, iniciou sua construção sistemática a partir de 1930, pari passu ao processo de industrialização, passou pela criação da Justiça do Trabalho, das inspetorias regionais (embrião do sistema de fiscalização), da CLT para, com muita luta, contradições e redobrados desafios, chegar à Constituição de 1988 que elevou os direitos trabalhistas à condição de sociais fundamentais e os ampliou a segmentos até então excluídos da abrangência da CLT: os trabalhadores rurais e os domésticos. Por outro, demostra, à saciedade, que a redução dos direitos não dinamiza a economia, não cria emprego e tem como consequências: mais informalidade, desemprego, subcontratações, exclusões, acirrando as desigualdades que costuram nosso tecido social.
Em cenário político permeado pelo negacionismo e pelos escândalos das negociações relacionadas à compra de vacinas a cada dia mais reveladas, circunstâncias que contribuíram para o não enfrentamento adequado da expansão do coronavírus que já tirou a vida de quase 600 mil brasileiras e brasileiros, deixando órfãos milhares de crianças e provocando grandes prejuízos à saúde da população e da própria economia, confia-se que o Senado barrará essa MPV 1045, de anunciada barbárie civilizatória.
É que, acaso aprovada a MPV 1045, contra a evidência dos fatos, mais fragmentará o já fragmentado mercado de trabalho brasileiro, em inaceitável regresso aos primórdios do capitalismo primitivo, acirrando as desigualdades que costuram fragmentada tecitura social, fazendo ecoar o brado de Evaristo de Moraes que, em 1905, olhando para a realidade brasileira e para as possibilidades de construção da vida industrial moderna integrada e menos desigual, apontava para a importância de um sistema legal de proteção que, oferecendo limites ou freios à concorrência desigualadora, ínsita ao capitalismo, tivesse condições de se sobrepor ao “encanto ilusório da ‘liberdade do trabalho’” .
[1] BELLUZO, Luiz G.; GALÍPOLO, Gabriel. A escassez na abundância capitalista. SP: Contracorrente, 2019, p. 194.
[2] CESIT. Pós-reforma trabalhista (2017), volumes 1 e 2/ org.: José Dari Krein [et al.]. São Paulo: CESIT, 2021
[3] MANZANO, Marcelo; BORSARI, Pietro. “Redução salarial proposta pelo governo empurra o país para a depressão”. Fundação Perseu Abramo, abril/2020. Em: https://fpabramo.org.br/2020/04/03/reducaosalarial-proposta-pelo-governo-empurrara-pais-para-a-depressao/.
[4] BIAVASCHI, Magda B.; VAZQUEZ, Bárbara V. “Medidas para o trabalho no contexto da pandemia: um atentado contra a razão humana”. GT Mundos do Trabalho do CESIT/Unicamp, 2020, disponível em; https://www.cesit.net.br/medidas-para-o-trabalho-no-contexto-de-pandemia-um-atentado-contra-a-razao-humana/
[5] CESIT. Pós-reforma trabalhista (2017), volumes 1 e 2, CESIT, 2021. Disponível em: www.cesit.org.br.
Artigo publicado originalmente na Carta Capital.
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