Por Tiago Resende Botelho
Desde a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, concluída administrativamente em 2005, com o decreto presidencial, e confirmada no julgamento da petição n. 3.388, em março de 2009, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), há várias tentativas de construir teses frágeis que neguem a luta dos povos indígenas e a fundamentação jurídica desse julgamento histórico. Raposa Serra do Sol não se apresenta como um caso isolado: inúmeros outros povos indígenas, de diversos estados e etnias, lutam por seus territórios utilizando o julgamento como exemplo bem-sucedido de respeito ao que determina o texto constitucional do Brasil.
Um ano após Michel Temer assumir o questionável mandato de presidente, o marco temporal ganhou contornos práticos, por meio do parecer n.1/2017 emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU), que criou uma interpretação vinculante e abusiva. O leitor pode estar se perguntando, mas, afinal de contas, o que é o marco temporal? É uma tese frágil e problemática que define a promulgação da Constituição da Federal de 1988 como o marco para que se possa ou não reconhecer uma terra como sendo indígena. Nesta lógica, só teria o direito à demarcação da terra indígenas aqueles povos que estivessem em suas terras na data de 5 outubro de 1988.
O STF, na decisão de Raposa Serra do Sol, para resolver o conflito gerado pelos arrozeiros diante dos indígenas das etnias Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, decidiu que estes possuíam o direito sobre suas terras, inclusive destacando que eles já estavam lá na promulgação da Constituição Federal de 1988.
A AGU, indo além, apropriou-se de uma questão controversa no STF e passou a impor, de forma obrigatória, sua aplicação em todas as esferas da Administração Pública. É preciso frisar que o marco temporal não é objeto de nenhuma das 19 condicionantes do caso Raposa Serra do Sol.
O tema é controverso no STF. Apesar de a Segunda Turma já ter utilizado o marco temporal, frente a um recurso ordinário em Mandado de Segurança, que reverteu a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e invalidou a declaração da Terra Indígena Guyraroká, em Mato Grosso do Sul, esta não é uma jurisprudência consolidada e tampouco condicionante. O próprio Supremo, em outros processos demarcatórios, deixou claro que as condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol não se aplicavam automaticamente a outros povos.
O marco temporal, portanto, consiste em uma ficção mal construída de defesa dos interesses do agronegócio. Insistir que os povos indígenas que não estavam no território dentro do lapso temporal da promulgação do texto constitucional não tenham o direito ao reconhecimento de suas terras é adotar uma interpretação abusiva da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Mesmo porque o marco temporal sustenta-se no negacionismo científico, histórico e jurídico, já que o motivo de não estarem em suas terras em 1988 está ligado diretamente ao processo de expropriação feito pelos 322 anos de colonização e, depois, por 21 anos de regime militar.
Os efeitos negativos do “parecer antidemarcação” da AGU foram tamanhos que, na data de 7 de maio de 2020, o ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu seus efeitos por meio de medida cautelar e, portanto, colocou em xeque o único instrumento que tenta institucionalizar a inconstitucional tese do marco temporal. Ao menos 17 terras indígenas estão com seus processos demarcatórios paralisados e devolvidos à Casa Civil e ao Ministério da Justiça, bem como inúmeras terras indígenas tiveram suas demarcações anuladas, como é o exemplo de Guyraroká, da etnia Guarani e Kaiowá e de Limão Verde da etnia Terena, em Mato Grosso do Sul, e de Porquinhos, da etnia Canela Apanyekrá, no Maranhão.
Indo além, a Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como Bancada Ruralista, informalmente apelidada de Bancada do Boi, sustenta que o art. 231 da Constituição Federal, que reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos tradicionais sobre as terras que ocupam, usa o verbo “ocupar” no presente, portanto teriam direito ao reconhecimento de suas terras apenas aqueles povos indígenas que se encontravam sobre elas no ano de 1988.
A tese do marco temporal é uma mentira cruel que busca chancelar várias outras mentiras e violências estruturais e institucionais, pois imputa aos indígenas a responsabilidade por não estarem em suas terras em 1988, como se as tivessem abandonado, quando na verdade lhes foi negado por meio de muita violência o direito de ser, fazer e viver em seus territórios ancestrais. Assim, o marco temporal valida e invisibiliza todos os tipos de violências sofridas por esses povos.
Definir uma temporalidade fixa para garantir direitos territoriais aos indígenas representa o contrário do projeto definido para esses povos pelo constituinte originário. Inclusive, o Estatuto do Índio, de 1973, criado na ditadura militar e com perspectiva integracionista, fortemente criticada, define que cabe ao Poder Executivo, no prazo de cinco anos, demarcar as terras indígenas. Não pode a Constituição de um Estado Democrático de Direito ser menos protetiva que uma lei pensada no regime militar.
O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata do território Xokleng, na Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, em Santa Catarina, definiu que a decisão sobre esse caso terá repercussão geral, ou seja, repercutirá para centenas de casos semelhantes de demarcação de terras indígenas. Assim, o Supremo terá a oportunidade de pôr fim ao confronto do indigenato e do marco temporal. O indigenato, claramente incorporado pela Constituição Federal de 1988, compreende que a terra indígena se faz imprescindível para a manutenção dos seus modos de vida. Portanto, todas as etnias expropriadas que demandem sua terra possuem o direito originário, inclusive sendo tal direito anterior à própria criação do Estado brasileiro, pois não estar em seu território resulta de uma política integracionista de expulsão que foi amplamente praticada até a promulgação do texto constitucional.
No dia 8 de março de 2021, o STF deu sinais de que entendeu o risco que representa o marco temporal no Brasil e, por unanimidade, admitiu o recurso dos Guarani e Kaiowá, da terra indígena Guyraroká, no estado de Mato Grosso do Sul, e analisará a ação rescisória que questiona a anulação da demarcação de sua terra pela Segunda Turma do STF em 2014, a qual ocorreu sem sequer ouvir os indígenas.
O marco temporal se insere no mesmo campo acientífico do terraplanismo, do tratamento precoce contra a Covid-19, sem evidências, da ideologia de gênero, do marxismo cultural, do negacionismo histórico e de tantas outras teses que, sem evidências, passaram a pôr em risco a democracia brasileira. O STF sabe que, ao julgar o recurso extraordinário de repercussão geral, terá a oportunidade de pôr fim a uma teoria inconstitucional criada dentro do negacionismo social que alaga o país.
O tempo não pode ser inimigo do direito originário à terra. Pelo contrário, a escuta profunda, a oralidade, a memória, a sensibilidade, os saberes ancestrais dos caciques, lideranças, rezadores, guerreiros, anciões, xamãs e membros da comunidade indígena ajudarão o direito e, caso queira, o STF, a entender o motivo pelo qual em 1988 os seres humanos indígenas não se encontravam na terra que sempre desejaram e desejam estar. O marco temporal só pode ser defendido por aqueles que nunca foram até uma área de conflito e olharam nos olhos dos idosos e das crianças indígenas que vivem o desprezo secular do Estado brasileiro. A história dos povos indígenas não inicia com a Constituição Federal de 1988, e o STF sabe disso.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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