Por Rodrigo Haidar
Para o juiz federal Sebastião Alves dos Reis, a imagem de Têmis vendada não era a melhor representação da Justiça. Uma pessoa idosa, pouco escolarizada e sem a menor ideia de como funciona um processo faltou a uma audiência para a qual foi convocada como testemunha. Reis deu a ela uma segunda chance. Pediu ao oficial de Justiça para voltar a intimá-la e explicar, de forma simples e clara, as consequências da falta. Na audiência remarcada, lá estava a testemunha. Mas quando quem faltou foi um delegado de Polícia, sua caneta foi bem menos paciente: expediu ofício para que fosse conduzido até o fórum sob vara. Afinal, ele conhecia bem as regras e consequências.
Talvez a boa Justiça deva tirar a venda dos olhos para não tratar situações aparentemente iguais de forma idêntica quando as circunstâncias pedem um tratamento diferente. Alves dos Reis morreu em 2008 com quase 90 anos de idade, três anos antes de o filho, Sebastião Alves dos Reis Júnior, tomar posse do cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça. Mas a lição ficou. E dá frutos. Sebá, como o ministro é chamado pelos amigos, aplica cotidianamente na 6ª Turma do STJ a ideia de Justiça que aprendeu com o pai. Para o ministro, a Justiça tem de enxergar, tatear, estudar e, principalmente, se expor para discutir soluções que levem em conta a vida real, muito mais complexa do que os volumes das ações penais que abarrotam seu gabinete.
Em entrevista por vídeo concedida à ConJur — na qual tinha como fundo a foto que tirou numa madrugada no centro de Brasília, de uma pichação com os dizeres “Não existe bala perdida” — Reis Júnior criticou a lógica punitivista que hoje domina as propostas de mudanças do processo penal e defendeu que Direito não é ciência exata para que se exija do Judiciário respostas uniformes e quase robóticas. Sebá falou sobre casos que revelam como a aplicação do Direito Penal como arma de combate à criminalidade, além de não funcionar, acaba se transformando em ferramenta de opressão contra as pessoas que, em regra, já são marginalizadas.
Disse ter receios sobre a boa saúde da democracia brasileira e atacou a ideia de que mudar lei é solução para combater a criminalidade, principalmente se a mudança é causada por casos que provocam comoção pública. “Vejo certa deslealdade no discurso que acompanha essas propostas, porque não se deixa claro que essas mudanças são feitas para um tipo de crime que é uma gota no oceano do sistema penal. Não funciona e pune os menos favorecidos. Tomar decisões de cabeça quente ou no calor de acontecimentos não costuma ser uma boa ideia. Por que legislar nessas situações funcionaria?”.
Leia a entrevista:
ConJur — A democracia brasileira corre riscos?
Sebastião Reis Júnior — Creio que sim. Uma crítica mais ácida aqui ou acolá, uma manifestação inapropriada ou inconveniente em um momento de debate, faz parte do jogo político. Mas o que assistimos hoje são ameaças recorrentes à autoridade do Poder Judiciário, propostas autoritárias de alguns setores. Não sou do time dos que acham que tudo é bravata, nem vejo como irrelevantes os ataques sistemáticos ao Supremo Tribunal Federal e mesmo ao Congresso Nacional. O fato de essas críticas ficarem, neste momento, só no âmbito das palavras, não quer dizer que a democracia não esteja em risco. Aliás, começar a achar que isso é normal é sinal de que alguma coisa está errada. Há pouco dias, por exemplo, li que a presidente da comissão de orçamento do Senado defendeu a extinção do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ora, uma das coisas que funcionam bem no Brasil é a Justiça Eleitoral. Tem problemas? Claro! Como em todas as demais instituições, cabe discutir aperfeiçoamento. Mas o que se defende? Extinção, fechamento. E a intensidade dos ataques tem subido. É bom não subestimar.
ConJur — O senhor completou dez anos no cargo de ministro do STJ no mês passado. Houve algum outro momento em que sentiu essa pressão, algo equiparado a esses ataques?
Sebastião Reis Júnior — Houve uma pressão muito grande sobre o Judiciário no auge da “lava jato”. Uma pressão diferente, não vinha de outras instituições. Surgia de dentro do próprio Poder Judiciário, com o apoio de órgãos que integram o sistema da justiça, como a Polícia e o Ministério Público. Essa pressão teve um eco muito grande na imprensa, que deu voz a um grupo de pessoas que aparentemente estavam acima de qualquer crítica, acima do bem e do mal. Pior, todo aquele que ousasse pensar de forma diferente era chamado de bandido, comparado à escória.
ConJur — Respeitar o devido processo legal se tornou pesado?
Sebastião Reis Júnior — Sim, mas pior é para o cidadão. Nós não temos a dimensão de como esse discurso punitivista oprime a todos e tem um efeito mais perverso justamente para aqueles que têm menos recursos ou meios para se defender. Por conta de uma liminar determinando a soltura de uma pessoa, que tinha aquele direito claro, recebi um e-mail de uma psicóloga relatando que eu não fazia ideia do bem causado pela decisão. De como ela restaurava ali uma situação injusta. Nós assistimos a operações policiais em que se entrava na casa das pessoas às cinco da manhã com barulho, voz de prisão, metralhadoras em punho, sem querer saber se havia crianças ou não nas casas, para cumprir ordens contra pessoas sem qualquer grau de periculosidade, burocratas do serviço público. Não se estava desbaratando uma organização armada que justificasse o uso de todo esse aparato. No entanto, servia ao espetáculo. Isso se espalhou pelo Brasil. A lógica da “lava jato” criou algo muito maior do que ela própria. Dei Habeas Corpus para um office boy, um garoto, preso e denunciado por participação em organização criminosa por ter levado um envelope de um lugar a outro. Criou-se uma aura de verdade absoluta em torno de denúncias do Ministério Público que pressiona juízes, e isso não faz bem ao país.
ConJur — Basta ver a quantidade de inocentes presos que noticiamos todos os dias. A Folha de S.Paulo tem publicado uma série de reportagens, sobre pessoas presas injustamente, que é algo assustador. O que leva a isso?
Sebastião Reis Júnior — Essa lógica punitivista. Claro que quando falo de Ministério Público, não estou falando de toda a instituição. A maior parte dos integrantes é gente séria, consequente. Há julgamentos em que o parecer e a sustentação do MP me convencem a conceder Habeas Corpus. Mas é preciso desfazer essa ideia, usada por grupos específicos, de que o juiz é um aliado do MP no combate ao crime. Não é e não pode ser. Judiciário não é protagonista do combate ao crime. O juiz tem de ser imparcial. Parece algo banal de se afirmar, mas hoje é preciso repetir isso a todo momento. Para enfrentar a criminalidade existem a Polícia, outros órgãos oficiais e o Ministério Público. Ao juiz cabe decidir se a investigação, a acusação, a denúncia feita por esses órgãos estão certas ou erradas, se a acusação procede ou não.
O papel do juiz é inclusive controlar os limites de atuação da Polícia e do MP. Se não for assim, não precisa de juiz. E endurecer a legislação, muitas vezes, também não ajuda. Muitas propostas — a que ficou conhecida como pacote anticrime é um bom exemplo — são vendidas como projetos de combate à corrupção, mas, como modificam a legislação penal e processual penal como um todo, são se restringem ao combate à corrupção. Quando se mexe nas hipóteses de concessão de Habeas Corpus, a mudança vale para o corrupto e para o ladrão de biscoito, para o furto, o estelionato simples. Vejo certa deslealdade no discurso que acompanha essas propostas, porque não se deixa claro que essas mudanças são feitas para um tipo de crime que é uma gota no oceano do sistema penal. Crimes contra a administração pública, crimes do colarinho branco, são numericamente muito, mas muito menores do que a massa dos crimes ordinários, como furto, roubo.
ConJur — O senhor diria que se usa a exceção como parâmetro para fixar a regra?
Sebastião Reis Júnior — Sim, e é aí que nascem as distorções. Um caso clássico é aquele das chamadas pílulas de farinha, um anticoncepcional que foi vendido como medicamento, mas era placebo. Em cima da comoção daquele caso se ergueu uma legislação desproporcional que faz chegar até nós, no STJ, processos com penas de mais de dez anos de prisão por conta de erros em fórmulas de cosméticos ou na importação irregular de remédios. Enfim, algo realmente desproporcional. E por que isso acontece? Porque surge determinado fato que criou comoção, repulsa, e alguém tem a ideia: “Vamos criar um tipo penal para isso”. Tomar decisões de cabeça quente ou no calor de acontecimentos não costuma ser uma boa ideia. Por que legislar nessas situações funcionaria?
ConJur — E a ideia de endurecer a legislação penal como forma de combater a criminalidade já se provou errada, não?
Sebastião Reis Júnior — Totalmente equivocada. Todos os anos há mudanças legais, mas o número de processos penais só cresce. O maior número de ações que chegam à Corte é de matéria penal. A criminalidade cai com punição efetiva e proporcional, não com novas leis. Historicamente, cerca de 90% da autoria dos homicídios não é desvendada. Em uma realidade como essa, adianta aumentar pena? De que adianta aumentar a pena para 50 anos, se ela não é efetiva? Para desestimular o crime é preciso efetividade: se eu tenho 90% de chance de ter um crime que cometi desvendado pelos órgãos de investigação e de ser punido pelas autoridades públicas, aumentar a pena desestimula. Se as chances de escapar são de 90%, não há tempo de prisão que vá fazer o criminoso mudar de ideia.
ConJur — E qual a solução?
Sebastião Reis Júnior — Não existe uma solução, mas um conjunto de ações necessárias. Havia alguma proposta de ressocialização no tão falado pacote anticrime? Não. Alguma proposta de reestruturação do Judiciário, do Ministério Público, das polícias, de entrega de elementos humanos materiais para esses órgãos funcionarem a contento? Não. Me perdoem, mas aquela ideia da cadeia de custódia da prova prevista no pacote anticrime é coisa de filme americano. Não se aplica aqui. Gostaria de ver qual Polícia, no Brasil, tem condições de seguir todos aqueles passos previstos no projeto. Antes de discutir isso, é preciso aparelhar o corpo técnico dos órgãos de investigação.
ConJur — Aparelhar a Justiça também?
Sebastião Reis Júnior — Sim. Não pela cúpula. Aqui nós temos boas condições de trabalho. Tenho computador com três monitores, celular, assistentes, tecnologia à mão. Mas vá até uma comarca pequena para ver como funciona. Tem um juiz, geralmente substituto, que de manhã preside um Júri, de tarde dá sentença em processo de locação, depois faz uma audiência de divórcio, aí vai pra outra comarca. Com estrutura de trabalho pífia. Há processos nos quais pedimos informações e elas não chegam, não conseguimos, o cartório não funciona em determinado horário. Processos que discutem excesso de prazo porque o réu entrou com apelação há um ano e meio e o caso nem subiu para julgamento no tribunal. O processo ficou, literalmente, parado por um ano e meio. Outro caso em que se questiona o motivo de não ser feita uma perícia e se descobre que o processo foi para a digitalização faz seis meses e nunca mais voltou para o gabinete. Então, olhe para isso e me diga que aumentar a pena de prisão no papel irá mudar alguma coisa. Há pessoas presas há seis meses, um ano, sem que tenham sido ouvidas em uma audiência. Pedidos de progressão de regime parados por tanto tempo, que quando se analisa o direito ao semiaberto, o preso já pode requerer o regime aberto.
ConJur — Isso é criminoso se olharmos para as condições carcerárias.
Sebastião Reis Júnior — É desumano. Há quatro anos visitei um presídio em São Paulo em que estavam presas mulheres transexuais. As condições da prisão e a negativa de direitos básicos somadas ao abandono e à desesperança daquelas mulheres é algo que lei nenhuma irá resolver.
ConJur — Mas há vontade política de resolver?
Sebastião Reis Júnior — Às vezes eu questiono isso também. Dias atrás, eu folheava um livro chamado 46570, do fotógrafo português João Pina. O título do livro é uma referência ao número de homicídios no Rio de Janeiro em um período de dez anos, de 2007 a 2016. O fotógrafo morou no Brasil, em diferentes períodos, entre o anúncio de que sediaríamos a Copa do Mundo e a Olimpíada e a realização dos eventos. Ele registrou a violência da cidade. Ele escreve, na introdução, sobre a expectativa criada em torno do que viria a ser o Brasil com os eventos, e depois deles, a promessa de uma nova era. Ao lado disso, fotografa a realidade do Rio de Janeiro, a violência contra as pessoas, principalmente contra as que vivem nas comunidades. Eu olhava as fotografias e as manchetes de jornais da época. E comparei com as manchetes de hoje: violência, crianças mortas por balas perdidas, a chacina do Jacarezinho, maior participação de menores no tráfico de drogas, um crescente número de policiais mortos. Nada mudou! Se olharmos aquelas fotografias e os comentários que o João Pina fez a cada fotografia e não observarmos as datas, vamos achar que aconteceu hoje. É atemporal. Então, eu te pergunto: a forma que escolhemos para combater a criminalidade está chegando a algum lugar? Não está!
ConJur — O que é preciso mudar?
Sebastião Reis Júnior — Temos de ser realistas e discutir, por exemplo, a descriminalização das drogas. Não tem como fugir disso. Canadá está fazendo isso, Estados Unidos também, diversos países europeus, o México. Nós já perdemos a guerra contra as drogas há muito tempo. Qual a expectativa de vida de um menino que vive em uma comunidade dominada pelo tráfico, que muitas vezes não tem pai, que a mãe demora três ou quatro horas para chegar ao emprego e volta de madrugada para casa? Ele fica sozinho, solto, muitas vezes não tem escola, cercado por gente ligada ao tráfico que ostenta riqueza. Ele tem chance de escolha?
ConJur — Como se discute descriminalização das drogas em um ambiente em que sequer o debate sobre o uso medicinal do canabidiol é tratado de forma racional?
Sebastião Reis Júnior — É realmente difícil. E tem tudo a ver com o que discutíamos um pouco antes, com essa lógica punitivista alimentada por muita gente, sabe-se lá com que interesses.
ConJur — O Judiciário não tem uma grande parcela de culpa nisso? A imprensa tem sua parte, que não é pequena. Mas não houve momentos em que a Justiça, principalmente as instâncias superiores, como o STJ e o Supremo, foi leniente com juízes e decisões que atropelavam o devido processo legal e tinham claros objetivos políticos? A “lava jato” é um bom exemplo dessa leniência, mas não é o único.
Sebastião Reis Júnior — Não tenho a menor dúvida sobre a culpa do Poder Judiciário nesse quadro. Houve abusos que saltavam aos olhos. E parte dos atores da Justiça se sentiu confortável com isso. Mais do que o Judiciário, o sistema de Justiça precisa se repensar. O Ministério Público não faz mea-culpa, a advocacia não faz mea-culpa, a magistratura não faz a mea-culpa. Todos nós adoramos apontar o dedo para a culpa do vizinho, sem fazer uma necessária autocrítica sobre a própria parcela de responsabilidade. A transformação tem de ser cultural, uma mudança de mentalidade. O Ministério Público tem que se preocupar em indicar o culpado, e não um culpado. Juiz deixar de achar que vai resolver os problemas do mundo aplicando o direito que ele entende que é o correto e não aquele direito que foi interpretado pelos tribunais superiores. A advocacia também saber o limite da sua atuação, porque não é possível a apresentação de quatro, cinco Habeas Corpus idênticos contra a mesma decisão, sem qualquer fato novo.
ConJur — O senhor tem esperanças de ver essa mudança?
Sebastião Reis Júnior — Confesso que quando vejo o Tribunal dar determinada decisão e, em seguida, um juiz da primeira instância ir ao Youtube, aos berros, chamar a decisão de absurda e dizer que vai continuar decidindo do jeito bem entende, a vontade é de pegar o boné e ir embora. Afinal, o que eu estou fazendo aqui? Eu vou julgar 12 mil processos este ano. Há dois anos nós estivemos na Alemanha e visitamos o tribunal que é o correspondente ao STJ. O tribunal só julga matéria penal e de Direito Privado, tem 150 juízes. Cada um deles julga 60 processos por ano. O tribunal inteiro julga o mesmo número de processos que eu, sozinho, julgo em um ano. Sabe quantos advogados podem atuar naquele tribunal? Salvo engano, 47 advogados. Se compararmos as realidades, é desestimulante. Apesar disso tudo, eu tenho esperança, sim, de ver a mudança. Olhe para as decisões das turmas que julgam matéria penal no STJ.
ConJur — Quais decisões?
Sebastião Reis Júnior — Por exemplo, a do ministro Reynaldo Fonseca aplicando entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que decidiu que deve ser contado em dobro o período de prisão de uma pessoa que cumpre pena em situação degradante, em presídios sem condições minimamente humanas. É um avanço enorme. Uma decisão monocrática, depois ratificada pela 5ª Turma. Houve a decisão sobre as regras para reconhecimento fotográfico. A partir de uma decisão do ministro Rogerio Schietti, também depois levada ao colegiado, tentou-se colocar balizas mínimas para evitar erros em prisões por conta do reconhecimento do suspeito por foto.
Há casos inacreditáveis, como o de uma pessoa que foi presa, processada e condenada por reconhecimento fotográfico. Mas, com um detalhe: o preso tinha 1,90m, enquanto o real criminoso media 1,65m. E condenado por uma fotografia. Mas a decisão do STJ coloca limites para, ao menos, tentar evitar novos casos assim. É necessário pensar em novas abordagens, como a da Apac (Associação para a Proteção e Assistência aos Condenados). São presídios administrados pelos próprios presos e já são realidade em alguns estados brasileiros. Presídios pequenos, com até 200 pessoas. Praticamente não há fuga e o índice de reincidência de quem cumpre pena em um estabelecimento prisional desse é de menos de 5%. Há histórias de presos que não querem deixar o presídio após o cumprimento da pena porque se sentem inseridos em uma sociedade. E não são apenas penas por crimes leves. Há crimes mais graves ali. Isso mostra que precisamos explorar novas soluções, de olho em ressocialização. Fortalecer a Defensoria Pública.
ConJur — A atuação da Defensoria é algo notável, não?
Sebastião Reis Júnior — Algo muito positivo. O quadro de defensores é notável. Pessoas aguerridas, preparadas. E insistentes. Muitas vezes não ganham, mas levam a tese ao Tribunal, propõem soluções. Todos os casos mais relevantes dos últimos tempos foram decididos a partir da atuação da Defensoria Pública. Por exemplos, os HCs coletivos que nós concedemos no auge da pandemia foram impetrados por defensores públicos. Uma das principais decisões que nós tomamos recentemente, sobre os problemas com o reconhecimento fotográfico, também veio a partir de contestação da Defensoria. A maior parte das grandes teses e questões importantes que hoje chegam ao STJ vem pela Defensoria ou por advogados mais simples, que muitas vezes não tem nem secretária, e que chamamos pejorativamente de advogado de porta de cadeia. Mas, muitas vezes, são eles que fazem a mola funcionar e salvam a vida de pessoas. Todos têm direito a um julgamento justo. O fato de a pessoa ser culpada não tira dela esse direito, de se defender com plenitude, com todos os recursos que a lei lhe confere e, condenada, de receber a pena justa, correta, a pena adequada.
ConJur — O senhor organizou um trabalho com defensores púbicos na 3ª Seção, não?
Sebastião Reis Júnior — Propus uma reunião com os defensores públicos que atuavam em Brasília, de representação de estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, eles aceitaram, e eu pedi que nos ajudassem atuando de forma conjunta. Como? Escolhendo as teses mais relevantes comuns aos estados para apresentar ao STJ, para que conseguíssemos organizar os trabalhos e dar racionalidade à jurisprudência. Eles fizeram isso e estamos colhendo bons resultados. Esse trabalho de organização é importante. Porque nós, juízes, nos perdemos entre os pedidos. E também nos deparamos com muita coisa absurda. Já recebi Habeas Corpus que a inicial tinha 720 páginas. A petição inicial, não o processo. Falta um pouco de bom senso também.
ConJur — Seria o caso de limitar o acesso à jurisdição?
Sebastião Reis Júnior — Isso é complicado, porque para cada caso esdrúxulo existem vários outros bem colocados. Não me agrada a ideia de restringir. No auge da “lava jato”, o debate era o absurdo da prescrição. Depois, houve procurador da República que falava alto sobre a impunidade causada pela prescrição se beneficiando de prescrição. Direito a recorrer deve existir. Me lembro de o ministro Luís Roberto Barroso, recém-chegado ao Supremo para julgar se cabiam ou não embargos infringentes no processo do mensalão, sustentar sobre como ninguém abre mão de um recurso a que tem direito. Se você acha que está sendo injustiçado, estão cometendo uma ilegalidade contra você, abrirá mão do direito de recorrer? Falar em tese é fácil, mas quantas injustiças vemos serem cometidas todos os dias. Veja o caso do reconhecimento fotográfico de que falamos: foi corrigido só quando chegou ao STJ. E se não pudesse chegar até aqui?
ConJur — Ou seja, é difícil fixar restrições objetivas de acesso à Justiça porque as circunstâncias fazem toda a diferença?
Sebastião Reis Júnior — Costumo dizer que Direito não é matemática, não é ciência exata. Quantas vezes vemos situações, no dia a dia, em que são necessárias adaptações? É preciso levar em conta a vida real. Há algum tempo, participei de um encontro de juízes federais criminais e discutíamos o prazo para a realização de audiência de custódia. Perceba a riqueza da realidade. Um juiz de Natal (RN) conta que fazia quatro, cinco audiências de custódia por mês. Aí o juiz de Guarulhos relata que faz quatro ou cinco por dia, a maioria por apreensão de drogas no aeroporto internacional. Então, o do Amazonas conta que se alguém for preso na fronteira levará até três dias para chegar até a cidade onde há vara federal para que a audiência seja feita. Como exigir a apresentação em até 24 horas no Amazonas? Qual regra fixar? O Brasil é um continente e aplicar regras uniformes pode gerar desigualdade e injustiça. Circunstâncias existem e devem ser ponderadas, na fixação de regras e na aplicação de sentenças. Eu acho muito difícil chegar em determinadas situações e dizer que são absolutas, fechadas e inquestionáveis. Me arrepia quando se defendem coisas assim. E, hoje, há muitas pretensas soluções que simplesmente esquecem o quanto é rica e complexa a vida real, aquela que está fora dos processos.
Entrevista publicada originalmente no Consultor Jurídico.
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