Resumo: A discussão é transcendente: qual é o real papel do Ministério Público? É titular da ação penal ou apenas comodatário, sendo que, na verdade, o dono é o Judiciário?
1. A ADPF interposta no STF
Há alguns dias, em nome da Anacrim, propusemos (Lenio Streck, Jacinto Coutinho, Marcio Berti, James Walker e Victor Quintieri) ADPF para ver declarado não recepcionado o artigo 385 do CPP, que diz:
“nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”.
Ingressamos com a arguição porque consideramos evidente que, já tendo sido declarado pelo STF que vivemos em um sistema acusatório (fato, pois, e não narrativa), nada mais constitucional que expungir do ordenamento o aludido 385.
Qual é o sentido de um texto de 1941 permanecer ditando o modo como deve ser apreciada uma ação penal? Quando o CPP foi editado, o MP era um mero apêndice do Executivo, sem garantias e sem qualquer marco regulatório de índole constitucional. Veja-se que o velho CPP possuía, então, recurso de ofício. Por quê? Porque nem nos juízes o sistema acreditava.
Em 1988 o constituinte alçou o MP a guardião do EDD e dono da ação penal. O que é isto – não se sabe se o próprio MP compreendeu até hoje (até porque muitas vezes se comporta como assistente de acusação). E talvez nem o Judiciário. Porque se tivéssemos compreendido o papel concedido ao MP pelo constituinte não teríamos dúvida de que o artigo 385 do CPP é excrecência autoritária. Nulo, írrito, nenhum.
2. Por que parte da comunidade jurídica ainda olha o novo com os olhos do velho? Questão de paradigmas. Simples assim.
Com efeito, existe parcela da comunidade jurídica, penso que minoritária, que ainda olha o novo com os olhos do velho. Ou com os olhos e pensamentos a partir da Teoria Geral do Processo, inaplicável ao processo penal.
Há também os catastrofistas que, pelo fato de o STJ e o STF continuarem a apostar na validade do 385, entregam-se à fatalidade. “STF e STJ já têm posição.” Pronto. Acabou o jogo. Existem também os criterialistas, que, com aguilhão semântico (lembremos de Dworkin), utilizam conceitos com os quais visam a substituir o próprio direito. A inconstitucionalidade (não-recepção) de um dispositivo inquisitorial de um Código de 1941 é, assim, substituída por conceitos criteriais. Um exemplo é a discussão sobre o conceito de pretensão e a sua relação com o pedido de absolvição. O que restaria? A resposta é simples: nada. Porque, quando no julgamento o MP faz a atuação final, com alegações finais e requer absolvição, o Estado está dizendo: não pretendo condenar esse réu. Sou o titular da ação. Não consegui as provas. Ou a defesa provou o contrário. Por qual razão o juiz pode condenar, mesmo assim?
Aqueles que consideram a ação já derrotada, esquecem do Fator Julia Roberts (ver aqui). Sim, o STF e os tribunais erram. E cabe à doutrina dizer isso. Como a personagem do filme Dossiê Pelicano (explicarei mais adiante).
Cabe à doutrina elaborar constrangimentos epistemológicos. É o que Bernd Rüthers, com outras palavras, cobra da doutrina em seu Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada) conforme explico no meu Dicionário de Hermenêutica (aqui e aqui).
Enquanto a ADPF tramita, vejo que o STF, por sua primeira turma, dá maus sinais – reconheço. Maus sinais, mas que são combustível para que nossa luta se torne mais robusta. Advocacia é coisa para fortes. Não desistentes.
Qual foi a decisão?
Em audiência de custódia, tratando de uma prisão em flagrante, se o Ministério Publico requerer a concessão de liberdade provisória com a aplicação de cautelares outras que não a prisão, o juiz pode decretar a prisão preventiva.
Conforme a 1ª Turma (AgR no RHC 234.974, de 2023), isso não configura um agir de ofício.
Pronto. Tudo a ver com a nossa ADPF. A ação que propomos é contra o agir de ofício. Contra o sistema inquisitório. MP não apenas opina; requer. Logo, se o dono da ação penal, que representa a sociedade, não requer a prisão e nem a condenação, por qual razão, motivo ou circunstância o Poder Judiciário pode não atender? Essa é a pergunta que os contrários à ADPF têm de responder.
Se não é por outra coisa, é para mostrar que o MP é agente político do Estado. Tem as mesmas garantias dos juízes… Isto deve ter sido feito por alguma razão, pois não? Um caso como esse julgado pelo STF, em que a prisão é considerada dispensável e o juiz decreta a prisão, é uma desmoralização para o MP. Joga-se por terra todas as conquistas da instituição em 1988 e de lá para cá. O mesmo ocorre de o MP requer a absolvição. O que resta ao juiz? Absolver.
Se a CF nada trouxe de novo para o agir do MP, então o texto constitucional é inútil. As palavras acerca das garantias e deveres do MP são letra morta? Espero que o MP se dê conta disso e apoie a ADPF. Parece lógico que a ADPF venha a receber apoio da Conamp. E, por que não, da AMB, porque defende a Constituição. E a ADPF invoca justamente a força normativa da Constituição.
A mentalidade inquisitorial é resquício de toda nossa história de opressão. Libertar-se do julgo estatal e entender o constitucionalismo contemporâneo como um garantidor de direitos é uma caminhada que parece estar longe de terminar.
O réu está condenado antes mesmo de ser julgado. Veja-se o labirinto: uma pessoa é indiciada, acusada, enfrenta processo, produz prova e quando, na hora do julgamento, o seu acusador chega à conclusão de que ele, o acusado, deve ser absolvido, vem o juiz e, mesmo não sabendo e nem podendo acusar, toma a decisão de o condenar. Ora, isso é coisa de 1941. Jamais de 1988 em diante.
3. O papel que a doutrina deve exercer em um país em que predomina a jurisprudencialização do direito: fazer direito não é glosar jurisprudência
Assim, se a primeira turma do STF considera legitimo que o juiz se substitua ao MP e saiba melhor o que é importante para um agir processual (por exemplo, decretar preventiva contra requerimento ministerial) e também considerar que, mesmo contra proposição do MP de absolvição, condene assim mesmo, então teremos que falar sobre isso com o STF. E foi para isso que propusemos a ADPF.
Doutrina é para isso. O papel da doutrina não é o de imitar a escola dos glosadores e contar novidades acerca do que o nosso realismo jurídico decidiu na semana anterior (ver aqui texto sobre realismo como ceticismo). Parece que estamos em face de uma espécie de positivismo sustentado no velho empirismo descritivista (direito ou decisão posta pelo tribunal é fato social posto pela mão humana e que deve apenas ser descrito – máximo dos positivismos contemporâneos). Realismo é positivismo fático.
O senso comum teórico dos juristas, como dizia Warat, “canoniza certas imagens e crenças para preservar segredos”. O segredo escondido é: o realismo do direito que criou uma legião de neo glosadores. Já não importa doutrina; importa o que os tribunais dizem. Profetas do passado. Aí nunca erram.
Tudo isso reflete a crise também no ensino jurídico que há muito venho denunciando.
Volto, por tudo isso e carinhosamente, ao Fator Julia Roberts, a simpática personagem do drama judiciário. No filme, o professor escrevia na lousa decisões da US Supreme Court e dizia: pronto, eis o direito. Eis o que foi decidido. E dali partia seu comentário (era o caso Bowers v. Hardwick). A aluna levanta a mão e diz: pois a Suprema Corte errou (por 5 a 4, a Corte disse que não era inconstitucional o estado da Georgia condenar alguém por crime de sodomia, pena de até 20 anos; pois alguns anos depois, por 5 a 4, a US SC mudou de ideia e considerou inconstitucional!). Bingo. Papel da doutrina. Fator Julia Roberts. Prevalecessem os realistas e os neo glosadores de jurisprudência, nada mudaria.
Eis o nosso papel, caros colegas signatários da ADPF e escritores de livros. Também por isso ingressamos com a ADPF.
Não, não foi para disputar retórica e vaidades com grupos que discordam de nós. Nossa ADPF é uma engenharia para construir pontes. E não para queimar caravelas.
Simples assim. Ou complexo.
Post scriptum: o que ficará no lugar do 385?
Um ilustre membro do MP, doutor em direito, contrário à nossa ADPF, disse que, se o STF declarar não recepcionado o artigo 385, o MP ficará sem controle. Ora, trata-se de uma ação constitucional. Estamos apenas requerendo que o STF diga se é ou não constitucional.
O que se colocará no lugar é o legislador que deverá dizer. Ou o próprio STF em eventual interpretação conforme. Mas dizer que o STF não deve declarar a não recepção porque o requerimento do MP de absolvição ficará/ficaria sem controle parece-me pouco, diante do imenso cabedal de conhecimento da comunidade jurídica de Pindorama. Imagine-se que, a cada lei inconstitucional, o STF não a declare com receio do que ficará no lugar. Bom, em qualquer democracia no mínimo existe o apelo ao legislador (Appellentscheidung). Essa é a dinâmica em uma democracia constitucional. Não colocamos essas alternativas na ADPF porque são óbvias e porque queremos discutir, efetivamente, o alcance do sistema acusatório no Brasil. Ele vale ou não vale? O STF deve dizer claramente isso.
O que não é da dinâmica é permanecer no interior do sistema um dispositivo gritantemente sem sentido lógico-conceitual: o titular da ação penal ser apenas decorativo-opinativo. Uma instituição com todas as garantias, uma verdadeira magistratura, cara para os cofres públicos, ser considerada apenas opinativa?
Se é só opinativa e essa opinião ainda por cima não ter serventia (afinal, o juiz pode ignorar essa opinião (sic) até mesmo na hora da audiência de custódia), que se retirem as garantias do MP. Pronto. Por qual razão as tem? Iguais a dos juízes? Por que, será? Eis a pergunta a ser respondida, não pelos autores da ADPF, mas, sim, pelo próprio MP.
Portanto, não é o receio que nos conduz. É a coragem de olhar para sempre, superar o velho e desafiar o novo. Mesmo que 35 anos depois.
[1] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/12/Como-s%C3%A3o-os-desenhos-deixados-pelo-escritor-Franz-Kafka
[2] Alegoria da caverna de Platão.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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