Por Celso Antônio Bandeira de Mello, Ricardo Marcondes Martins, Weida Zancaner Bandeira de Mello, Carolina Zancaner Zockun, Pedro Estevam Serrano, Irene Nohara e Maurício Zockun
Espera-se que o Supremo honre o papel de guardião da Carta e não se submeta a interesses do poder econômico
A Constituição admite que o Estado preste serviços públicos direta ou indiretamente. Em relação à prestação indireta, por meio de empresas privadas, o Constituinte exigiu a outorga por concessão ou permissão após prévia licitação. Interessante notar a ênfase constitucional: “sempre através de licitação” —é o que consta expressamente do art. 175. Assim, a outorga da concessão demanda a realização de prévia licitação, o que não pode ser afastada pela mera vontade do legislador, muito menos do administrador público.
Infelizmente, o respeito à Constituição, no Brasil, é a exceção. Diante de nossa realidade, não surpreende o aviltante menoscabo à enfática exigência constitucional de licitação para outorga da prestação de serviços públicos, muitas vezes apoiada por significativa parcela da comunidade jurídica brasileira. O tema voltou à luz, recentemente, no julgamento da ADI 2.946 pelo Supremo Tribunal Federal. A ação impugnou a validade do art. 27 da Lei Geral de Concessões (Lei 8.987/95).
O dispositivo prevê a possibilidade de alteração do controle societário da concessionária. Caso não seja realizada como manobra para fraude à licitação, esta alteração faz parte do dia a dia da empresa, da vida empresarial, e nada tem de inconstitucional.
Se o concessionário não tiver condições de continuar prestando o serviço, deve, regra geral, ter rescindido o contrato. Provisoriamente, o poder público poderá, inclusive, assumir a prestação, podendo, excepcionalmente, contratar outra empresa privada para mantê-la, enquanto não concluído novo processo licitatório. Transferir a concessão para terceiro, sem que este tenha vencido uma competição pública, viola às claras o art. 175 da Constituição vigente.
Parcela da doutrina, desde a edição da lei 8.987/95, apontou a inconstitucionalidade do art. 27, que assinala a possibilidade dessa cessão sem licitação. Contudo, nestes tempos de quase completa submissão ao poder econômico, nada surpreende que muitos não apenas tenham silenciado em relação à inconstitucionalidade, mas a defendido apaixonadamente.
A ADI 2.946, proposta em 29 de julho de 2003, impugnou essa violação. Em 6 de agosto último, o relator, ministro Dias Toffoli, levou à ação ao Plenário do STF, iniciando seu julgamento. Em voto irretocável, surpreendeu o poder econômico e afirmou, de modo objetivo, com precisão cirúrgica, o que a boa doutrina sempre dissera: a transferência de concessão, sem a observância de nova competição pública, com garantia da igualdade entre os interessados, e comprovação de cumprimento dos requisitos de habilitação, viola a enfática exigência constitucional de que a prestação indireta sempre se dê “através de licitação”. Foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes.
Em 10 de agosto, o julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Submeter-se-á o Supremo Tribunal Federal aos interesses do poder econômico ou cumprirá o seu papel de guardião da Constituição? Ninguém pode saber. Os votos dos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, porém, são um sopro de esperança nestes tempos tão sombrios. Ainda há quem defenda nossa Constituição!
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *