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Valiosas dicas do ministro Sebastião, minhas concordâncias e adendos

Valiosas dicas do ministro Sebastião, minhas concordâncias e adendos

O site Migalhas trouxe excelente reportagem da lavra do ministro Sebastião Reis, do Superior Tribunal de Justiça. O portal deu um título bem ilustrativo: Ministro Sebastião Reis dá dicas valiosas aos operadores do Direito. Tentarei fazer breve anamnese das dicas e fazer algumas sugerências. Como se verá, há mais concordâncias que discordâncias de minha parte.

Ao trabalho.

  1. Tem razão o ministro: há excesso de processos. Aqui já poderíamos, de pronto, falar em aumentar o número de membros do STJ (já que o tema é esse). Seu parente próximo da Itália possui 350. O nosso, 33. Para começar a discussão.
  2. O ministro reclama, com razão, da injustificada insistência dos tribunais e juízes em não seguir precedentes fixados pelos Tribunais Superiores. Na mesma linha, tem razão o ministro Sebastião Reis em apontar a demora do STJ em pacificar questões jurídicas relevantes ou contrária a seus próprios precedentes, criando uma insegurança jurídica que não deve existir.

Esse tema me é caro. De fato, ministro, quando se trabalha com teses e não com precedentes, tudo fica mais difícil. Também estou de acordo quando diz que nenhuma lei vai convencer juízes e tribunais a seguirem os precedentes fixados por STJ e STF.

Porém, é nesse ponto que reside o problema. Estamos longe de adotar um “sistema de precedentes”. Observemos: quando uma tese (chamada de precedente) é editada, começa-se tudo de novo, pelo caráter que a tese possui. Explico. Um precedente tem uma holding. É diferente de uma tese. Um precedente não nasce precedente.[1]

Em face disso, torna-se importante reconhecer que no Direito, um precedente, instituto tradicional e típico dos países sob o common law, é uma decisão judicial pretérita que acaba por ter relevância, contingencialmente, em casos subsequentes, servindo de referência na decisão desses casos. Mas o genuíno precedente pode nos ajudar. E muito. E em sequência, há uma série de nuances com relação ao papel dos precedentes no Direito (existem diferentes níveis, graus, maior ou menor força de seu papel vinculante ou persuasivo e há diversas maneiras a partir das quais se interpreta o instituto). Veja-se que tampouco o CPC estabeleceu que precedentes são entendimentos que firmam orientações para o futuro (como se fossem todos mecanismos voltados para pré-ordenar o direito aplicável em casos futuros)[2].

Se fosse recapitular meu argumento ao essencial, diria que (i) os precedentes não são respostas antes das perguntas (casos concretos e indagações doutrinárias) e que (ii) subsistem no contexto brasileiro ao menos dois problemas em os compreender como teses abstratas proferidas pelos Tribunais Superiores. Primeiro, o de defender aquilo que nunca foram (respostas antes das perguntas). Segundo, o de vincular abstratamente a solução para eventuais problemas interpretativos.

Por que os precedentes do STJ não são obedecidos? Vários ministros se perguntam sobre isso. Insisto em minha resposta: talvez porque o que o STJ esteja fazendo não seja propriamente “precedente”. Na verdade, não “se faz” precedentes. Precedentes não possuem certidão de nascimento. Sua aplicação sempre deveria ser contingencial. O Brasil inverte a história dos precedentes: aqui eles são feitos para o futuro. Concessa vênia pela contundência, o que se faz para o futuro são as leis. Judiciário julga o passado. Contingencialmente o que se julgou no passado vira, aí sim, um precedente.

Penso que o STJ (e é dele que fala o ministro), aplicando o “princípio da caridade”,[3] poderia se abrir a novas possibilidades e a outras perspectivas que não a da, perdoem-me, simplista tese de ser uma “corte que faz precedentes”, como se o Tribunal pudesse editá-los por meio de “ato de vontade”. Em nenhum país do mundo cortes superiores fazem precedentes por ato de vontade (no sentido técnico-kelseniano da palavra). Tribunais não servem para editar “leis” ou “proto-leis”. Teses não são precedentes e precedentes não são teses. E precedentes não são leis.

Se parte da doutrina afirma a tese — e o STJ nela acreditou — de que Tribunais Superiores são Cortes que fazem (ou editam) precedentes, então, data vênia, na medida em que a sistemática não está funcionando (se estivesse, não haveria tantas queixas), a pergunta que se põe é: será que a tese não está equivocada? O conceito não está equivocado? Popperianamente: se todos os cisnes são brancos e aparece um cisne negro, o que se faz com a assertiva? Diz-se que os cisnes não são cisnes?

Numa palavra, ainda: Tribunais pelo mundo não fazem paradas a cada vez que querem “editar” um precedente. Porque eles não “editam”. Se assim o fazem no Brasil, já não trabalharão com a noção de precedentes. Instituirão um novo conceito abstrato, procurando resolver todos os casos futuros. Na medida em que os casos futuros são peculiares (como o mundo é), vai ocorrer que os casos não cabem nos “precedentes”. E talvez por isso é que as teses (que não são precedentes) não são obedecidos. Não por culpa dos juízes. Veja-se que o próprio STJ tem dificuldade de seguir suas próprias teses.

  1. O ministro Sebastião também tem razão com relação ao Ministério Público, que recorre de qualquer coisa e faz excesso de litigância e se transformou naquilo que o ministro Schietti chamou de despachante (ver aquimeu textosobre o tema). Na maior parte da matéria criminal, nem de longe o MP demonstra imparcialidade. Chega a pessoalizar as ações. E isso leva, à evidência, a excessos de acusação, erros judiciários e a recursos indevidos. Devemos falar muito sobre o MP. O MP fala por tantas vozes que não sabemos a quem ouvir (aponto aqui meu texto sobre o MP e o Divã — ele simboliza o que quero dizer).
  2. Tem razão em parte o ministro Sebastião quando diz, em relação à advocacia, que há abuso no uso de recursos e ações constitucionais por parte da defesa, como HCs repetidos e fadados ao insucesso que atacam decisões que estão em consonância com a jurisprudência da Casa etc.

Ok. Mas aqui precisamos apelar a Darwin. Ministro: as espécies se adaptam. Evoluem. No ecossistema jurídico, quando pequeníssimo percentual dos REsps passa pelo filtro da jurisprudência defensiva, as espécies criam mecanismos. O porco espinho não nasceu “espinhento”. Há uma espécie de “seleção natural” também nesse jus-ecossistema (veja-se o famoso exemplo do pescoço da girafa e como houve a sobrevivência das de pescoço comprido).

Assim — e peço vênia pelo uso das metáforas — também funciona o ecossistema jurídico. Arriscaria dizer que todos esses “defeitos da advocacia” apontados pelo ministro equivalem a uma defesa — darwiniana — contra, por exemplo, o uso do livre convencimento “de forma bem livre”, à aplicação da tese do pas de nullité sans grief, aos constantes in dúbios pro societate, como defesa contra os robôs que fulminam recursos, contra o uso indiscriminado das súmulas impeditivas como a de número 7 (que é uma carta branca para passar ou não passar o pleito) e contra as conhecidas “ponderações”. Para dizer pouco.

Temos, pois, de rearranjar esse ecossistema, para que as espécies possam viver com mais liberdade, isolando os predadores.

  1. Estou de acordo mais uma vez com o ministro quando diz que votos e decisões não precisam ser longos, repletos de precedentes e citações doutrinárias, salvo naqueles casos em que estamos diante de uma situação nova, controversa, examinada pela primeira vez.

Sem dúvida. Fundamentação não é o mesmo que ornamentação. O Brasil é a quintessência do obiter dicta. O Tribunal — de novo meu apelo ao princípio da caridade — deveria dar mais atenção à academia e à doutrina produzida, fixando-se menos em compêndios (pseudo)práticos que apenas fazem glosas das próprias decisões do Tribunais, o que transforma a própria discussão jurídica em uma tautologia: o tribunal decide, o comentador comenta (descreve-resume) e o tribunal recomenta o comentado. A questão reside no seguinte ponto: como abrir uma brecha nesse círculo vicioso e transformar a discussão em um círculo virtuoso? O trabalho, aqui, é dos tribunais. E da doutrina. Numa ação conjunta.

  1. Também estou de acordo com o ministro em relação à objetividade das petições que devem ser claras, didáticas, não cabendo mais, salvo situações excepcionais, a referência a precedentes do relator do caso ou já conhecidos por todos os integrantes do Tribunal; doutrinas repetitivas e, muitas vezes, enfadonhas, já endossadas ou refutadas, várias e várias vezes, pelo órgão que apreciará a ação/recurso.

Vamos lá. Há, aqui, alguns problemas. Primeiro, quantas vezes o advogado tem de fazer um agravo porque o ministro não levou em conta a posição anterior do próprio ministro ou da Turma?

Segundo, o ensino jurídico frágil e fragmentado faz com que advogados saiam com formação deficitária, alguns com problemas até de vernáculo, separando sujeito e verbo. Nem todos os causídicos têm alta expertise. O problema é que a doutrina prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler usada nas faculdades acaba sendo utilizada depois nas petições.

E a coisa não para por aí. Isso faz com que tenhamos que enfrentar de frente o problema dos concursos, transformados em quiz shows. E, é claro, de todo o entorno. O ecossistema que se forma. Juízes, promotores etc., não são filhos de chocadeira.

Isso tudo conforma uma “tempestade perfeita” para o correto diagnóstico feito pelo ministro Sebastião. Em um congresso, lembro que pedi ao ministro Luiz Felipe Salomão: alteremos o modelo de concursos nas carreiras jurídicas e, em poucos anos, inverteremos esse quadro. Hoje as faculdades atendem demandas de concursos e prova da OAB. No meio disso tudo, há uma indústria de cursinhos e uma produção de baixa literatura jurídica (sendo generoso na crítica). Alteremos os concursos e a prova da OAB. Tudo o mais vem atras.

Veja-se: sentenças mal fundamentadas dão azo a recursos; acórdãos mal fundamentados dão azo a recursos especiais. Corrigindo o ensino jurídico, os concursos, teremos a reforma pela base. Agora, para chegar mais rápido à base, paradoxalmente teremos que entrar pelo teto. De cima para baixo.

Portanto, em resumo, estou de acordo com as importantes tematizações trazidas pelo ministro Sebastião. Bem-vindas

Uma pausa. Para me permitir a fazer pequenos acréscimos e sugestões. Afinal, este escriba esteve quase trinta anos no MP, hoje é advogado e está envolvido com ensino superior há quatro décadas, tendo fundado e liderado vários cursos de mestrado e doutorado (hoje titular de dois programas).

Assim:

  1. I) Como superar as suspeições e parcialidades, se ainda se usa a taxação (aqui há uma taxação desastrosa) do artigo 254 do CPP, o que transforma a suspeição em uma prova do demônio ou uma ordália invertida (aqui chega a ser irônico: se o LC serve para superar a taxação ou prova taxada, como se costuma dizer,porque somente há pouco conseguimos dizer que o artigo 254 não tem um rol taxativo?Ou o LC só funciona contra o réu?).
  2. II) Falamos todos em “acusatório”, mas se pratica, nos confins do Brasil (e nas capitais) o velho inquisitivismo, até mesmo nas pequenas coisas, como nos gritos da juíza do Rio de janeiro mandando advogados se sentarem (quem manda sou eu etc.).

III) Só há pouco é que o artigo 212 do CPP começou a ser aplicado, sendo que ainda remanesce a velha tese de que “há que provar o prejuízo”, como se a construção da prova pelo juiz não fosse por si um prejuízo para a defesa na hipótese de uma condenação.

  1. IV) Como avançar num país onde se torna normal falar que “uma lei não pega”? Quantos dispositivos do CPC “não pegaram”? O Tribunal da Cidadania deveria se preocupar com isso. Por exemplo, começar a discutir a questão da coerência e da integridade. Aliás, esse importante dispositivo (926 do CPC) é quase que ignorado nos Tribunais Superiores. Por qual razão? Sozinho o 926 já deveria dar conta da questão dos precedentes, porque coerência, integridade e estabilidade são requisitos de um, aí sim, sistema jurídico.
  2. V) Do mesmo modo, a indevida fragilização do inciso VI do § 1º. do artigo 489, do CPC, espelhado pelo artigo 315 do CPP, diminui, sensivelmente, o dever de fundamentação. Ali está bem presente a questão “o que é isto — um precedente” e seus problemas não solvidos.
  3. VI) Aliás, voltando ao tema “precedentes”, não enfrentamos devidamente o que é que vincula numa decisão. E vincula a partir de quando? Quais são os critérios para umdistinguishing?Como fazer um distinguishing? E quando tentamos, esbarramos em súmulas defensivas. Como vou demonstrar que determinada tese do STJ não se aplica ao caso, se não consigo demonstrar que o meu caso é diferente? O advogado entra em “looping epistemológico”.

VII) Um problema também crônico: o cidadão (leia-se seu representante, o advogado) não tem como enfrentar conteúdos (tese? precedente?) como a do HC 161.251, pelo qual a “propositura do ANPP é faculdade do MP, a partir — e agora vem o ponto nevrálgico — da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo“.  Com a máxima vênia, ministro, o que seria “ponderação da discricionariedade”? O que o STJ quer comunicar com isso? Trata-se de um conceito absolutamente vazio. Anêmico. O STJ deixaria os advogados mais tranquilos se dissesse “o MP propõe se quer”. Pergunto: o MP não precisa fundamentar? É um ato de vontade, no sentido de “vontade de poder” (Wille zur Macht)? Como o advogado enfrenta isso?

VIII) Por fim, mas não bem por fim, tem um tema que é uma espécie de ferida narcísica do judiciário. É utilizado, mas não tematizado pelos Tribunais. Falo do livre convencimento. Um dia isso terá que ser enfrentado. Não farei a discussão agora. Já a fiz várias vezes e voltarei em breve. Há chavões doutrinários sobre o tema, como “o LC veio para superar a prova tarifada…”, claro, sem dizer onde está atualmente a prova tarifada a ser superada (faz empo que houve a revolução francesa) e nem se é bom “superar” tarifações (se essas forem, p.ex., garantias constitucionais). Aliás, o que é uma tarifação? Uma garantia como proibição de prova ilícita não seria uma ótima tarifação? Enfim…

Não fosse por nada, o CPC 2015 tirou a palavra “livre” (artigo 371). E na exposição de motivos da emenda, isso ficou claro. Por que não se cumpre? Por que todos os dias milhares de embargos (para falar apenas desse recurso) são vitimados com argumentos baseados no LC? Isso não é violação de lei federal? Escrevi há algum tempo texto falando do tema, quando o STJ contra claro texto, manteve o LC.

Sim, sei de como isso é tratado no resto do mundo. Tem a “sana crítica” e variações pelo mundo. Investiguei isso a fundo. No meu Dicionário exploro essas peculiaridades do direito comparado nos verbetes Livre Apreciação da Prova e Livre Convencimento. Vejam-se as exigências de critérios e objetivações quando se trata do § 261 do StPO (CPP alemão). Vale o comentário de Gerhard Dannecker e Julian Roberts, em ótima coletânea internacional que cito. Vale também o que diz Michael Bohlander: a livre apreciação não significa uma liberdade judicial absoluta com relação à valoração da prova por parte da corte. Há estritas regras a serem cumpridas. E poderia falar da aversão ao discricionarismo de Tomás-Ramon Fernandez, todos comentados no Dicionário.

O que quero dizer é que a livre apreciação e o livre convencimento não podem ser álibis retóricos. É disso que reclamo e penso que essa é uma queixa de boa parte da comunidade jurídica.  Mas, enfim, um dia teremos de enfrentar essa “pedra filosofal da hermenêutica”, que pode ser usada para decidir de qualquer modo. No resto do mundo, esse livre não é assim “livre”.

Ministro: quem está na planície da advocacia sabe o que é ser vítima de juízos livres, inclusive livres da lei, como se estivéssemos ao tempo da Escola do Direito Livre. Quem advoga, sabe. Quais são os limites ao livre convencimento? Como avançamos isso? Mas deixemos isso de lado, por enquanto. Vamos avançar nos consensos.

Saúdo, efusivamente, as dicas do Ministro. É urgente, mesmo, que tenhamos essa tomografia em formato de debate público. É o que tento fazer toda semana aqui na ConJur.

Ex positis:
No fundo, o ministro Sebastião Reis Jr, em seu belo texto, coloca o próprio Direito no divã. E, implicitamente, faz um “convite” para o debate. E diz: “Chega de nos limitarmos a apontar culpados (sempre os outros) e nos calarmos quanto a soluções efetivas ou sugerir apenas aquilo que nos parece mais conveniente”.

Procurei seguir, de forma disciplinada, essa orientação à risca.

Os dias se seguem, processos se acumulam e os profetas surgem com alguma salvação. Alguns creem na profecia da salvação da Inteligência Artificial, visual law e quejandos. Outros, como o ministro Sebastião Reis Jr., percebem, de forma apropriada, que o problema é muito maior e mais profundo. Eis que deita raízes na própria cultura jurídica de terrae brasilis. Alvíssaras. Voto com o relator.

Como tenho insistido, juristas não têm o direito de desistir do Direito.


[1] Tenho procurado me dedicar a isso em vários livros sobre isso, como Precedentes Judiciais e HermenêuticaDicionário de Hermenêutica e O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?

[2] Para mais detalhes, sugiro em especial o meu Dicionário de Hermenêutica.

[3] Pelo “princípio da caridade”, pede-se que uma acomodação racional do que é dito pelo interlocutor (Donald Davidson), buscando otimizar a concordância. Aqui faço uma antropofagia dos conceitos de Neil Wilson, Quine, Blackburn e Davidson.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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