Por Pierpaolo Cruz Bottini
“Justice in not to be taken by storm”
(Ruth Ginsburg)
Nesta quarta-feira (14/4), o Plenário do STF decidirá se a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba — onde atuava o ex-juiz Sergio Moro — era competente para julgar a ação penal que resultou na condenação de Lula nos apelidados “caso tríplex” e “caso Atibaia”, e para processá-lo em acusações relacionadas ao recebimento de imóvel e doações ao Instituto Lula.
A incompetência da Justiça federal do Paraná para atuar nesses casos foi reconhecida pelo ministro Fachin, e agora os demais ministros da Suprema Corte vão analisar se mantém ou afastam essa decisão [1].
Por mais que existam consequências políticas importantes atreladas ao tema, como a elegibilidade de Lula e a extensão da decisão a outros processos da chamada operação “lava jato”, a discussão é técnica e não comporta grande espaço para interpretação.
Trata-se do debate sobre regras de competência jurisdicional.
A lei fixa critérios objetivos que estabelecem os responsáveis para conhecer e julgar as diversas questões apresentadas ao Judiciário. Essas normas são instituídas de antemão, ou seja, antes da ocorrência dos casos, para evitar que as partes ou demais interessados possam influir na escolha do magistrado e, consequentemente, em sua decisão [2].
Isso garante segurança jurídica, evita a escolha de juízes sob medida ou encomenda, indicados a dedo de acordo com sua tendência para sentenciar dessa ou daquela maneira. A distribuição de processos está atrelada a parâmetros definidos previamente, independe do nome das partes ou de sua relevância pessoal ou política.
Esse é o debate que será travado quarta-feira nos casos envolvendo Lula: segundo as regras legais, a Justiça federal de Curitiba era competente para julgar os delitos a ele atribuídos?
A competência para conhecer do caso, nos crimes comuns e praticados por agentes sem prerrogativa de foro, está fixada no artigo 70 do Código de Processo Penal: “A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração”, ou seja, onde o crime for cometido, no local dos fatos.
Nos “casos Lula”, o Ministério Público Federal acusou o ex-presidente de corrupção e lavagem de dinheiro por receber vantagens indevidas oferecidas pela OAS para nomear e manter em cargos públicos agentes que, em tese, beneficiariam a empresa em diversos pleitos.
Independentemente do mérito ou da prova dos fatos, se a corrupção é definida como a solicitação ou o recebimento da chamada propina por parte do funcionário público, o juiz competente para julgar o caso Lula é aquele do local em que a suposta vantagem foi pedida, ou do local onde ocorreu o pagamento. Se Lula exercia suas funções em Brasília, a OAS tinha sede em São Paulo e a suposta vantagem indevida teria sido paga no Guarujá, em Atibaia ou em São Bernardo do Campo, não existe qualquer motivo para o julgamento ocorrer em Curitiba.
É verdade que existem exceções à regra da competência pelo local dos fatos. A própria lei define que quando diversos crimes, praticados em inúmeros lugares distintos, são conexos — por exemplo, quando praticados pelas mesmas pessoas, ou quando a prova de um crime tem ligação íntima com o outro —, é possível reuni-los sob um mesmo juiz, por razões de eficiência e para evitar decisões contraditórias.
Mas entre os “casos Lula” e as ações penais que compõe a chamada operação “lava jato”, que corriam na Vara Federal de Curitiba de Sergio Moro, não havia qualquer conexão, a não ser o envolvimento da OAS, o que não justifica a reunião de processos, do contrário, todo e qualquer ilícito envolvendo a empreiteira seria de competência daquele juiz.
A 13ª Vara Federal do Paraná — na “lava jato” — apurava fatos específicos: a corrupção de funcionários públicos para “fraudes de desvios de recursos no âmbito da Petrobras” por meio de carteis e determinadas licitações direcionadas. Tais casos estavam em discussão no Paraná porque o personagem que operava os pagamentos das empreiteiras para os diretores da Petrobras — Alberto Youssef — atuava naquele estado, portanto, naquele local ocorreram aqueles crimes.
No “caso Lula” não há menção a Alberto Youssef, a carteis, a licitações direcionadas ou a específicos contratos fraudados no âmbito da Petrobras. Trata-se de uma relação entre a OAS e o ex-presidente ocorrida em outro local, segundo a própria acusação. Como afirmou o ministro Edson Fachin, as condutas atribuídas a Lula “não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A”, e que não existe “uma relação de causa e efeito entre sua atuação como presidente da República e determinada contratação realizada pelo Grupo OAS com a Petrobras S/A, em decorrência do qual se tenha acertado o pagamento da vantagem indevida” [3].
Portanto, por mais que se torçam as regras de competência, os atos envolvendo o tríplex do Guarujá, de Atibaia ou do Instituto Lula não foram praticados no Paraná, nem têm conexão com os ilícitos cometidos no âmbito da Petrobras e apurados em Curitiba.
Portanto, correta a decisão do ministro Edson Fachin, que, diga-se de passagem, não é a primeira, nem a mais nova que trata da mesma questão.
Desde 2015, o STF vem apontando que a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba não é competente para apurar fatos ocorridos fora do Paraná e desconexos com os desvios na Petrobras. O Pleno da corte afastou a competência daquele juízo para julgar desvios de recursos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão [4], e para apreciar imputações de organização criminosa a membros do PMDB ocorridas em Brasília [5].
A 2ª Turma do STF, por sua vez, reconheceu a incompetência da Justiça federal do Paraná para a apuração de crimes referentes aos contratos para a construção da Refinaria Abreu e Lima, uma vez que praticados em Pernambuco [6], e aqueles firmados com a Transpetro, porque estranhos à Petrobras [7].
Em suma, após diversas decisões, o STF acabou por reconhecer que os fatos relacionados à operação “lava jato”, cujo julgamento é de competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, se limitam aos “crimes praticados direta e exclusivamente em detrimento da Petrobras S/A”, como afirmou o ministro Fachin [8].
Diante de todos esses precedentes e do próprio texto legal, parece claro e evidente que aquela vara federal de Curitiba não é competente para apreciar ou julgar os casos do tríplex, de Atibaia ou do Instituto Lula.
É triste que essa evidente incompetência somente tenha sido reconhecida após anos, findos os processos, já julgada parte de seus recursos, e cumprida parte da pena. Passa-se a impressão de que se trata de uma manobra da defesa, que fez uso de uma questão técnica para postergar um julgamento.
Mas, como exposto, não se trata de um pequeno detalhe, mas do descumprimento de uma regra legal importante, fundamental para a segurança jurídica. Se a procrastinação no reconhecimento da incompetência afeta a imagem da eficiência da Justiça, o ônus dessa morosidade não pode pesar sobre a defesa, que desde o início apontava o descumprimento da lei. A passagem do tempo não sana a ilegalidade.
Como apontou Ruth Ginsburg na frase que abre este artigo, tempestades e terremotos políticos não podem abalar o Judiciário, nem desviá-lo de sua função. Sejam quais forem os efeitos políticos da decisão, seja qual for a opinião pública sobre o tema, cabe à Suprema Corte defender a lei, as regras de competência, o Código de Processo Penal.
Como apontou Orosimbo Nonato, nos anos 50 do último século, em passagem bastante adequada ao julgamento de quarta-feira: “Para o juiz não pode haver julgamentos históricos que o levem a quebrar o molde de seus julgamentos e a alterar o critério de suas determinações. De certo que, cidadão, não se acha o juiz em torre de marfim inatingível. Convocará, entretanto, todas as energias de sua alma para nem ceder, envilecido, aos poderosos do Olimpo, nem se deixar colher nas malhas das seduções da popularidade”.
Que o texto legal seja respeitado!
[1] A discussão pelo Plenário, e não pela 2ª Turma do STF, nesse caso é objeto de criticas acertadas de Geraldo Prado e Danyelle Galvão https://geraldoprado.com.br/artigos/o-stf-e-os-processos-contra-o-ex-presidente-lula, bem como por Lênio Streck, Juliano Breda e Marco Aurélio Carvalho em https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/streck-breda-castro-supremo-duelo-plenario-turma.
[2] Sobre o tema, vale a leitura do artigo de Paulo Freitas, em https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/paulo-freitas-ribeiro-importancia-da-preservacao-do-principio-do-juiz-natural.html.
[3] Emb. Decl. no HC 193726/PR, Relator: ministro Edson Fachin, Data do julgamento: 08/3/2021.
[4] Questão de Ordem no Inq. 4130/PR, Relator: ministro Dias Toffoli, Data do julgamento: 23/9/2015.
[5] Inq. 4237/AP, Relator: ministro Edson Fachin, Data de julgamento: 27/6/2018.
[6] AgRg Pet 6863/DF, relator: ministro EDSON FACHIN, Data de julgamento: 6/3/2018, Segunda Turma e AgRg Pet 6727/DF, relator: ministro EDSON FACHIN, Data de julgamento: 30/6/2017, Segunda Turma.
[7] AgRg Pet 8090/DF, relator: ministro EDSON FACHIN, Data de julgamento: 8/9/2020, Segunda Turma e HC 198081/PR, Relator: EDSON FACHIN, Data de julgamento: 2/3/2021.
[8] Emb. Decl. no HC 193726/PR, relator: ministro Edson Fachin, Data do julgamento: 8/3/2021.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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