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Advogados não incomodam, e sim contribuem para a democracia (parte 2)

Advogados não incomodam, e sim contribuem para a democracia (parte 2)

Continuação da parte 1

O STF instado agasalhou entendimento dessemelhante, cimentando-se na teoria da separação de Poderes, para acordar que aquele obrar é uma das prerrogativas do presidente da Casa, causando espécie a sem-número de profissionais do Direito, que a ela se contrapõem porque [1], graça a ordens constitucionais, legais e regimentais ele tem de cumprir o rito precitado e sem qualquer procrastinação, remetendo o pedido à votação do Pleno.

Aprovada, a CPI entrará em uma fila de pleitos de igual jaez expectando o término de outras por ventura em curso, exceto seja demonstrada a sua urgência e, sendo esta referendada pela plenária, viabilizar-se-á que a inquisa “fure a fila” e tenha preferência sobre as demais, podendo tramitar concomitantemente com as em andamento [2].

O STF, outrora, deliberou que as pessoas requisitadas ou intimadas a depor, independentemente de sua qualidade processual, hão de ser tratadas com respeito e urbanidade, não devendo ser humilhadas e execradas, desfechando que a gravação e a transmissão em tempo real destes depoimentos não provocam, a depender dos fatos — cada caso é um caso — danos às suas honras morais e materiais.

São sessões, grande parte, públicas e de interesse social que faculta o cidadão acompanhar todo o seu processamento cogitando detenham elementos para extrair às suas próprias conclusões, que serão depositadas nas urnas eleitorais.

Decorridas mais de três décadas de quando as CPIs ganharam força, vergonhoso assistir alguns parlamentares até o presente utilizarem as sessões como se estivessem em “palcos circenses”, ao interpretar papéis de “parlamentares-hermeneutas-show”, os quais sonham “lucrar com os holofotes midiáticos, com o propósito de auferir — parafraseando Mário Rosa em locução oposta à célebre cunhada, em 1970, por Andy Warhol, os seus menos de 15 minutos de fama ou, utilizando-se o verbo de Rosa, os seus 15 minutos de execração [3],  como se o “show” passasse imperceptível aos olhos dos brasileiros.

Rosa — recentemente vitimado por vil imputação criminal, ao final absolvido, descreveu as agruras pelas quais passou [4], esclarecendo o porquê da paráfrase por Warhol: imaginava o artista que, “[n]o futuro, todos teremos direito a 15 minutos de fama e muita gente achou que ele estava sendo extremamente pessimista.

Com a frase, ele ironizava a compulsão das pessoas por se tornarem celebridades instantâneas e a máquina de criar famosos montada pela era da informação, que começara a expor um novo leque de possibilidades para a visibilidade pública.

O futuro de Warhol chegou e, hoje, podemos perceber na verdade que ele foi um grande otimista, com todo o seu pessimismo. Porque no mundo super-ultra-interconectado de agora, o mais correto seria dizer no presente que todos terão direito a 15 minutos de execração! Podemos chamar isto de Lei Andy Warhol às avessas. [5]

Se se levar em conta os conturbados e odiosos dias hodiernamente experimentados, os quais muitos se permitiram contaminar em ínfimo lapso temporal, aqueles “parlamentares-hermeneutas-show” serão defenestrados do Legislativo pelo voto popular.

O Brasil não mais tolera brincadeiras e tem pressa em andarilhar à trajetória que o leve ao encontro de um efetivo estado democrático de direito, que veda aos agentes dos poderes públicos fuçarem efêmeras notoriedades, máxime quando no exercício de suas públicas funções e às expensas do Estado – o nosso dinheiro.

Um dos mecanismos potencializadores à espetacularização é a duração infinda e ininterrompida dos depoimentos de pessoas, como se adverte há anos. Houvesse lei vigente procedimental democrática ter-se-ia a CPI e a CPMI um rito conforme a Constituição do qual não poderia se afastar. Existir, existe e está na Constituição e no CPPM, já que a utilização da analogia (artigo 3º do CPP) não foi declarada pelo STF como não recepcionada pela Carta.

É como se fossem hereges apedrejados em praça pública. As longuíssimas sessões levam às pessoas a situação indignamente opressiva e violenta, não só pelo esgotamento psicofísico a que são submetidas, mas pela direta e inquestionável agressão e abalo emocional que a exposição pública atingem às suas dignidades pessoais.

A vexação da pessoa humana é uma das mais cruentas formas de tortura, crime de especial gravidade repelido pela Constituição (artigo 5º, III) e pela Lei 4.445/1987, as quais asseguram seja dispensado a ela um tratamento digno. Os indícios e/ou provas obtidos por meio de tortura são ilícitos e/ou ilícitos por derivação e/ou ilegítimos (artigo 5º, LVI, CF) e são inadmissíveis no processo.

Na dicção do parágrafo 3º do CPP, “preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente”, possibilitando a vítima ajuizar contra a União ação indenizatória por danos moral e material (artigo 5º, X, da Constituição c/c o artigo 157 e parágrafos do CPP); se condenada a União nós, os brasileiros, pagaremos a conta.

O Legislativo tem de enfrentar o vácuo legal com destemor e confeccionar uma lei ordinária democrática revisitando as vigentes e alusivas a CPI e a CPMI, sem deixar de mirar as suas concepções às luzes da Constituição de 1988, com intenção de manufaturar legislação de matiz democrática-constitucional a ditar que as inquisas sigam os seus trabalhos do início ao fim, nunca se descurando que os direitos e as garantias processuais constitucionais dos cidadãos encontram-se salvaguardados e em conformidade com a cadeia de custódia de provas [6].

Consoante pontuado alhures, as células parlamentares encontravam-se em desuso desde a metade do século findo, voltando a ter glamour no início da década de 1990, quando alguns parlamentares se aperceberam serem elas um forte braço e de enorme apelo político-popular, principalmente quando as sessões passaram a ser transmitidas ao vivo e em cores pelas televisões abertas, por canais de televisão por assinatura, pelos rádios e pelos canais dos Três Poderes.

De lá para cá transcorreram mais de 30 anos e elas votaram com gás total a começar pela CPI do Covid-19, explodindo com a dos Atos Golpistas que, pelos gravíssimos crimes contra o estado democrático de direito e golpe de Estado, dentre outros, pautaram as mídias, as redes sociais, enfim, a sociedade, auferindo magnificência sem igual, dando ensanchas aos deletérios males decorrentes das fakes news e das deep fakes que hoje se tenta coibir.

As CPI e a CPMI atuais, tal qual as da década de 1990, desnutridas de qualquer procedimento legal democrático multiplicaram-se com a chegada do mundo digital, gerando profunda preocupação ao Estado e à democracia em decorrência do experimentado nas eleições de 2023 e pelas que estão por vir no final deste ano, não se tendo como afirmar se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) conseguirá, em ínfimos meses, tempo hábil para sanar a fenda e coloca-la em execução, com a devida fiscalização.

Atos golpistas
Retornando-se ao relatório final da CPI dos Atos Golpistas entregue ao ministro Alexandre de Moraes, este o enviou para o Departamento de Polícia Federal para ser anexado aos autos do inquérito policial já em curso com a finalidade de investigar e identificar as pessoas que patrocinaram, organizaram e perpetraram aqueles terrificantes atos no nunca mais esquecido 8 de janeiro de 2023, dando azo, a pedido do delegado de Polícia Federal Fábio Alvarez Shor, deferido pelo ministro Alexandre de Moraes, em 8 de fevereiro, que deflagrou a fase ostensiva da operação tempus Veritatis, prendendo preventiva ou temporariamente homens e mulheres, buscando e apreendendo coisas etc.

Por absurdez, o ministro Moraes chegou ao ponto de proibir, em pleno estado democrático de direito, a interlocução entre advogados — estes não acusados de nada, tampouco investigados por coisa alguma — dos presos e dos investigados a manter entre si contatos ético-profissionais, consoante assegurado na Constituição e no Estatuto da OAB, para traçarem, conversarem entre si, se lhes fosse conveniente, defesas técnicas processuais que melhor atendessem aos interesses de seus constituintes sem que se distanciassem dos princípios deontológicos que norteiam a advocacia, função essencial à Administração da Justiça (artigo 133 da Constituição), e se ele o fez desta forma, não foi à toa. Advogado não é criminoso. Advogado não é pombo-correio! Advogado colabora com o tripé do sistema judicial.

Sem esmorecer, os advogados, apesar de tudo ter recaído em uma sexta-feira véspera de Carnaval, como soe acontecer em situações em que tais, acorreram de todos os cantões do país para enfrentar aquela parte extravagante da decisão ora em comento.

E o fizeram como sempre fazem, sempre fizeram e sempre farão, “com a roupa encharcada e a alma repleta de chão”, portando as suas canetas Bic e, com os seus cérebros afiados porque estes constituem as maiores armas do advogado, e conduziram-se para o fronte, com a força que lhes é inerente porque, no exercício de seu múnus público detêm a obrigação de brandir em prol dos cidadãos, da democracia, enfim, do estado democrático de direito.

Impossível declinar todas as manifestações advindas em desfavor da decisão do ministro Moraes. Não há cogitar que todos tenham realizado leitura enviesada. São escritas por profissionais calejados e escolados no cotidiano da advocacia por décadas e décadas. Em “A defesa (tem de ter) a palavra” houve a oportunidade de realçar fração destes protestos.

Excerto da petição, de 9/2, da Ordem dos Advogados do Brasil, subscrita pelo bâitonnier José Alberto Ribeiro Simonetti Cabral, destaca-se:

“A ampla defesa não se faz presente quando desrespeitada e limitada à comunicação entre advogados e investigados, sendo inadmissível num Estado democrático de Direito que garantias não sejam observadas em nome de uma maior eficácia de coerção e repressão. Se é certo que não existe direito absoluto na ordem constitucional, podendo-se, em certas situações, relativizar os postulados da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, é induvidoso, por outro lado, que não é possível a ausência de fundamentação para justificar eventual relativização que impõe limites inconstitucionais à atuação dos patronos dos investigados.”

O Instituto dos Advogados Brasileiros, a entidade de Direito mais antiga de todas as Américas (180 anos), por intermédio de seu presidente Sydney Sanches seguiu na mesma toada: “[a] decisão do ministro Alexandre de Moraes importa em violação às prerrogativas da advocacia ao determinar que os investigados estejam submetidos à medida cautelar de ‘proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive através de advogados” [não presos, tampouco investigados, repita-se], acarretando medida que afeta a atuação dos advogados constituídos para suas respectivas defesas, como também finda por identificar, lamentavelmente, o patrono como um agente que atua fora dos limites legais. Impedir advogados de interagirem ou se comunicarem prejudica o direito de defesa e impede a eleição de sua melhor estratégia. Ademais, a decisão fere a inviolabilidade dos atos e manifestações da advocacia e a garantia do sigilo de comunicação entre cliente e advogado”.

Em consequência ao pedido da OAB adveio, em 14/2, novel decisão no qual o ministro Moraes sublinha:

“(…) os investigados não poderão comunicar-se entre si, seja pessoalmente, seja por telefone, e-mail, cartas ou qualquer outro método, inclusive estando vedada a comunicação dos investigados realizada por intermédio de terceira pessoa, sejam familiares, amigos ou advogados, para que não haja indevida interferência no processo investigativo (…).

Em momento algum houve qualquer vedação de comunicação entre advogados e seus clientes ou entre os diversos advogados dos investigados, não restando, portanto, qualquer ferimento as prerrogativas da advocacia, razão pela qual MANTENHO A DECISÃO, pois conforme pleiteado pelo Conselho Federal da OAB, estão mantidos integralmente ‘o direito à liberdade do exercício profissional e o direito ‘comunicação resguardado constitucionalmente.’”

Assim, a OAB, em seu portal manchetou: “Vitória da Advocacia: inexiste proibição à comunicação entre advogados, decide STF em pedido da OAB”, para, em seguida, publicizar com regozijo:

“Em vitória da advocacia, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta sexta-feira (16/2) que não há proibição ou limite para as comunicações entre advogados de investigados em operações da Polícia Federal.
(…)
Moraes afirmou que ‘conforme pleiteado pelo Conselho Federal da OAB, estão mantidos integralmente ‘o direito à liberdade do exercício profissional e o direito à comunicação resguardada constitucionalmente.’
O ministro ainda disse que não houve, em nenhum momento, proibição à comunicação entre os advogados. ‘Em momento algum houve proibição de comunicação entre advogados ou qualquer restrição ao exercício da essencial e imprescindível atividade da advocacia para a consecução efetiva do devido processo legal e da ampla defesa’.
(…) Beto Simonetti afirma que a decisão do ministro é emblemática no sentido de afastar qualquer interpretação divergente e reforçar as prerrogativas da advocacia. ‘Não se pode confundir o advogado com seus clientes, e o texto original permitia que algumas pessoas tivesse essa interpretação. Agora, após atuação da Ordem, fica esclarecido que não há essa limitação, de acordo com o que dizem a lei e as prerrogativas.’”

Existe (i) algo muito certo ou (ii) muito errado nas decisões e (iii) na interpretação emprestada pela OAB. Não se mira quaisquer margens aos encômios da OAB. Lendo-se a primeira decisão observa-se que a restrição está lá disposta. Lendo-se a segunda percebe-se que no penúltimo parágrafo idêntica restrição, a qual vai de encontro ao derradeiro parágrafo.

As contradições internas são latentes. Qual a escorreita compreensão que se deve extrair das decisões do ministro Alexandre de Moraes? Decisões judiciais hão de ser límpidas, e estas longe estão de serem límpidas, deixando, por consequência, os advogados atuantes na causa com a justa dúvida que não deve existir, motivo pelo qual, como dito, nada a comemorar, pelo contrário, aguarda-se, pois e com a devida urgência, pronta reação da OAB, não imerecidos encômios.

Todos os cidadãos e todas as cidadãs brasileiros hão de confiar que a bancada da defesa nunca estará vazia. Nela sempre haverá um advogado ou uma advogada prontos para defender os direitos legais daqueles que, gostemos deles ou não [7], estão sentados no banco dos réus e, sendo assim, serão defendidos até à exaustão.

A defesa (tem de ter) a palavra. Com a palavra o bâitonnier José Alberto Ribeiro Simonetti Cabral, porque aquela contradição exige aclaramento em nome da advocacia e da democracia.

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[1] https://www.conjur.com.br/2021-abr-15/interesse-publico-prazo-instalacao-ambito-abrangencia-cpi/, a contrário sensu.

[2]  Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, pp. 77-104, jan./jun. 2016.

[3] VIEIRA, Luís Guilherme. “Judiciário vs. CPIs: uma questão de cidadania. Observatório da Imprensa, 5/9/2001. Disponível em: www.observatoriodaimprensa.com.br/cadernos/cid050920012.htm . Acesso em: 3/6/2008.

[4] ROSA, Mário. “Entre a glória e a vergonha”, ed. Geração Editorial, 2017.

[5] ROSA, Mário. “A reputação na velocidade do pensamento”. São Paulo: Geração Editorial, 2006, p-p. 103-104.

[6] PRADO, Geraldo. “A cadeia de custódia da prova no processo penal”. Marcial Pons, 2021.

[7] BARBOSA, Rui. “O dever do advogado”, ed. Aide, 2002.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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