Por João Antonio da Silva Filho
O Brasil conquistou sua democracia a duras penas. Conceitualmente, esta forma de representação política é fruto da composição das diferenças e se alimenta dessa diversidade para se manter viva. Em termos práticos, é o único regime no qual até aqueles que o consideram ruim têm a liberdade de criticá-lo das formas mais ácidas possíveis.
É importante reconhecer que nosso país passa por um longo período de polarização política, mas não há —no pacto constitucional de 1988 e nem em quaisquer das nossas normas infraconstitucionais— guarida para atos de censura prévia. Nossa legislação adotou para os chamados ‘crimes de opinião’ a punição após a realização do fato, lembrando que a liberdade de expressão é um direito fundamental e corolário do Estado Democrático de Direito. Sem a garantia desse direito não se pode falar em democracia. O limite à liberdade de expressão encontra-se justamente na honra alheia, mas sempre na forma de imputação posterior, nunca por meio de censura.
Quando esta Folha e outros veículos de imprensa pretenderam entrevistar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), preso em Curitiba, em pleno processo eleitoral de 2018, por um juiz tempos depois declarado parcial e suspeito pelo Supremo, considerei a proibição à sua livre manifestação uma aberração jurídica. Qual crime Lula cometeria ao dar uma entrevista? Que se esperasse a fala dele para, eventualmente, se apurar o que teria dito, e se isso iria ser tipificado por algum marco legal como infração passível de punição. Simples assim!
Digamos que o deputado concedesse uma ou mais entrevistas e, consumados os fatos, houvesse a apuração de eventuais crimes tipificados em lei, inclusive aqueles que o levaram à prisão, relacionadas às apurações no chamado “inquérito das fake news”, em andamento no STF e sob a relatoria do ministro Moraes. Teríamos, então, a necessária configuração do crime para a aplicação das penas previstas em lei.
Suspeito que esse movimento de “controle prévio de opinião” —em meio aos inúmeros e repetidos crimes praticados por altas autoridades da República na disseminação de notícias falsas e crimes correlatos— alimente a falsa sensação de que o Supremo não tolera esse tipo de atitude, enquanto funciona como uma casca de banana jurídica que pode atingir outros desavisados, quiçá ingênuos, até mesmo nas hostes do centro democrático e da esquerda, cuja atitude, no momento, é de regozijo com tais medidas. Não custa lembrar a máxima contida no ditado popular “Pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
No mais, é importante realçar que a sociedade passa por intenso processo pedagógico nessa barafunda, que mistura interesses financeiros, políticos, ideológicos e religiosos e nos trouxe a uma encruzilhada histórica inédita. Avalio que a própria democracia deve aplicar os remédios a esses males, inclusive as medidas legais estritamente em consonância com o previsto na Constituição e demais diplomas legais que estão sob sua tutela, o que, seguramente, não guarda relação alguma com medidas de força de prevenção de crimes futuros.
Ou criaremos aqui uma versão rocambolesca baseada na ficção, uma distorção politicamente distópica, com base em elementos do clássico filme “Minority Report”, estrelado por Tom Cruise, no qual havia o departamento “pré-crime”, cujo trabalho era prevenir crimes futuros?
Imagino que não seja o caso de elevar nossa democracia ao nível da ficção e do desespero político por conta de atos de insanos como o deputado e grupos que açulam este tipo de comportamento. Pelo menos não pelo instrumento abominável da censura prévia.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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