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Inadmissibilidade de recurso especial em habeas corpus

Inadmissibilidade de recurso especial em habeas corpus

A interposição de recurso especial pelo Ministério Público em sede de habeas corpus esbarra no próprio texto constitucional, que não prevê o manejo de tal instrumento em sede mandamental.

O recuso especial está previsto no art. 105, III, da CF, em termos genéricos, como cabível nas “causas decididas, em única ou última instância”, contanto que ocorra uma das três hipóteses mencionadas em duas alíneas. Seu inc. II, “a”, estabelece o recurso ordinário como único cabível em habeas corpus decidido em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais estaduais, do Distrito Federal ou Territórios, restringindo, expressamente, seu manejo àquelas hipóteses em que “a decisão for denegatória”.

Não há palavras soltas na CF, tampouco se podem expandir os estreitos limites por ela impostos, especialmente em sede criminal, porquanto a ponderação de princípios força a interpretação mais favorável ao cidadão.

Dada à especialidade com que o art. 105, II, CF trata a matéria recursal atinente aos habeas corpus, a única via recursal é o recurso ordinário, e, mesmo assim, apenas nas hipóteses em que denegada a ordem.

Não se trata a restrição de mera liberalidade do legislador constituinte originário, mas de uma interpretação teleológia e sistemática do direito brasileiro, na medida em que disponibiliza o habeas corpus como ação mandamental autônoma dirigida à cassação de violação à garantia fundamental à liberdade – ou seja: violação das mais graves em nosso ordenamento –, cuja concessão pode se dar de ofício em razão da premência do dano causado à pessoa humana, sendo, por conseguinte, remédio constitucional eletivo unicamente à defesa, jamais à acusação, a qual sequer figura como parte na relação processual.

Inviável, diante de acórdão concessivo de ordem de habeas corpus – o que reconhece a violação a direito fundamental –, seja ela reformada por intermédio de recurso da acusação, ainda que travestido de custus legis em situações em que tais.

A ausência de previsão na CF de recurso manejável pelo MP contra decisão de concessão de ordem de habeas corpus (falta de reserva constitucional) é política traçada pelo constituinte originário e não pode ser suplantada, sub-repticiamente, pelo recurso especial, cujo objeto, embora mais genérico, não se destina a avaliar eventuais violações a direitos fundamentais.

A falta de expressa previsão legal – constitucional, na hipótese – retira do recurso um dos seus indispensáveis pressupostos objetivos.[1] Ou, como preferem outros doutrinadores, a exigência de previsão legal do recurso constitui condição de admissibilidade, implicando sua inexistência na impossibilidade jurídica do pedido, vale dizer: no seu não cabimento.[2]

Seja pressuposto objetivo ou condição de admissibilidade, a melhor doutrina diverge na classificação, mas é unânime em ensinar que a falta de previsão legal (leia-se constitucional) inviabiliza o recurso.

Nem se diga que a previsão genérica do especial apelo se sobrepõe à restrição recursal feita em habeas corpus, porque, nessa ação mandamental sui generis, quis o constituinte manter a histórica natureza jurídica de garantia suprema do status libertatis, o que cairia por terra se houvesse reserva constitucional para recurso contra a concessão de writ. Daí está, portanto, a decorrer a vedação do desvio de finalidade jurídico-constitucional do habeas corpus.

Ademais, sabe-se que uma importante característica dos recursos é “não ensejarem a instauração de nova relação processual”.[3] Pacificada está a ideia de que o habeas corpus (dentre outros, como a revisão criminal) constitui outra ação, exatamente por configurar relação processual diversa, com autor diferente e pedido outro.

Ora, um recurso contra decisão concessiva do mandamus não permite a ingerência de um estranho (o Ministério Público, com roupagem de fiscal da lei) à relação processual (que se estabelece entre o impetrante/autor e o coator), a pleitear contrariamente ao jus libertatis protegido pelo remédio heroico, a buscar desconstituir a decisão garantidora do direito de ir e vir prolatada no instrumento próprio e exclusivo − e isso no mesmo processo e na mesma ação.

A irrecorribilidade da concessão do remédio heroico insere-se perfeitamente e com total lógica no sistema constitucional. A CF emprestou, ao estabelecer as normas de direitos e garantias fundamentais – dentre eles, o habeas corpus – ampliação do domínio da liberdade individual, com a consequente restrição da atividade estatal.

Ilógico e assistêmico seria permitir, em sede desse especial instituto, peleja da parte acusatória ou do fiscal da lei com o objetivo de cassar logo a precípua razão de existência do writ.

O Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ORDEM CONCEDIDA NA ORIGEM. NÃO CABIMENTO. Conforme comando constitucional previsto no art. 105, II, alínea a, não cabe recurso ordinário quando a decisão for concessiva de writ. (Precedentes). Entendimento que se aplica ao habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Writ não conhecido.[4]

Conclui-se que, fora o recurso especial (e o extraordinário) encontrar-se enclausurado por cláusula pétrea, porque a complementar a ampla defesa e o devido processo penal, se em sede de habeas corpus em que o MP se arvora a impetra-lo, o STJ, além de não permitir o desvio da finalidade libertária, veda apelo especial em writ impetrado pela defesa técnica do cidadão e concedido em acórdão do qual não cabe extremo por falta de reserva constitucional.

Necessário manter-se, à disposição da pessoa humana que tenha, ou esteja na eminência de ter, violação à sua liberdade de ir e vir, sem tentar emprestar interpretação hermenêutica típica dos “saltos triplo carpado”, o habeas corpus no lugar em que sempre esteve, tirando nos “anos de chumbo”, no direito brasileiro; confia-se.

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal – 4º vol. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 302.

[2] GRINOVER, Ada da Pellegrini et ali. Recursos no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pp. 76-77.

[3] GRINOVER, Ada da Pellegrini et ali. Recursos no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 30.

[4] STJ. HC nº 36716. Relator o ministro Felix Fischer. Publicado no DJ em 8/11/2004.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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