Eis a continuidade da discussão sobre “os limites do Judiciário” ou “limites da decisão judicial”. Para quem não leu a primeira parte, leia aqui. Impressiona que esse tema não impressione. Tempos “pós-modernos”. Tudo é instantâneo. Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado.
De todo modo, invoco o “princípio da caridade epistêmica”, de autores consagrados como Blackburn e Davidson. O presente texto deve ser lido sob essa luz.
Assim, como se sentem as partes e os advogados? O que gostariam de dizer e não dizem, em face de uma cotidianidade adversa e hostil em que:
a) Todos os dias o advogado está submetido a todo tipo de autoritarismo, arbitrariedade (disfarçada de discricionariedade).
b) O juiz profere uma decisão manifestamente ilegal e o ônus é do causídico.
c) Precedentes (que não sabemos bem o que são) são desrespeitados. Ou “respeitados ad hoc“. O CNJ edita a Resolução nº 134 para “recomendar que as decisões sejam fundamentadas”.
d) O que significa “pretensão de simples revisão de prova”? Isso vale para o STF também.
e) Robôs eliminam recursos, como snipers epistêmicos.
f) E quando o tribunal se equivoca rotundamente, o causídico tem de correr atrás do prejuízo — isso quando o sistema não possui uma armadilha que impede a reversão.
g) E os recursos julgados monocraticamente? Em nome da celeridade?
h) De que modo um REsp pode ser julgado monocraticamente, na hipótese, por exemplo, de que o tribunal de piso tenha absolvido um réu? Como reverter (e por vezes, monocraticamente) uma decisão desse jaez sem revisar a matéria fática? Como examinar isso monocraticamente e, por vezes, dar provimento a agravo em casos em que o REsp foi inadmitido na origem? Veja-se a Súmula nº 568: “O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema“. De que modo é possível chegar à conclusão de que a decisão recorrida malfere “entendimento dominante acerca do tema” sem revisitar a prova?
i) Como saber se a decisão violou a posição dominante do STJ sem entrar no exame da prova quando a tese da absolvição, por exemplo, foi insuficiência de provas ou inexistência de provas? Para dizer que há provas não tem de examinar o conteúdo probatório? Não se trata, aqui, de uma questão de contradição performativa? Para que eu possa dizer que algo é, não preciso, antes, saber o que a coisa é?
j) E, por vezes, quando a prova é juridicamente mal avaliada e o STJ deveria intervir (porque não é o mesmo que revolver a própria prova), esgrime-se a Súmula 7? Vou dar um exemplo: se em um acórdão se afirma que o motorista agiu sem culpa ao dirigir seu veículo a 120 km por hora quando colidiu com outro que vinha na preferencial, não se irá dizer que contra tal decisão não cabe REsp sob o argumento de que se “trata de matéria de fato”. O que há, nesse caso, é erro quanto ao conceito jurídico de culpa, o que significa erro na valorização jurídica do fato.
l) E o que dizer do SPJE (supremo poder dos juizados especiais), que aniquila direitos todos os dias de seca à meca e do Oiapoque ao Chuí? Cito só uma mazela, trazida pelo advogado Diego Schuster:
“enquanto no rito ordinário a ação rescisória se apresenta como mais um caminho para se combater decisões ‘rebeldes’, sendo possível até mesmo atacar aquelas decisões que aplicam um precedente sem observar a questão discutida no processo, ou seja, sem fazer a devida distinção, no microssistema do JEF as decisões são inquebráveis, sendo possível ao juiz escolher respeitar, ou não, os precedentes de observância obrigatória”.
m) Existiria um poder absoluto do “microssistema dos juizados especiais” no Brasil?
O ponto esquecido e banalizado pela comunidade jurídica é: quais são os direitos das partes e dos advogados nesse sistema de justiça que se estabeleceu no Brasil?
Numa palavra final, impressiona que nada disso abala o imaginário jurídico. De fato, o menino de 18 anos, Étienne de la Boétie, tinha razão.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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