Nicolau dos Santos Neto havia sido presidente do TRT de São Paulo. Houve uma grave acusação de desvio de verbas na construção do novo fórum trabalhista. O Senado instaurou uma CPI do Judiciário que tinha o foco nesse caso. Os telejornais só falavam nisso e todos os ingredientes de um grande escândalo estavam presentes. A prisão preventiva dele, em nome do prestígio das instituições, foi decretada e ele, depois de, em vão, discutir a legalidade dessa medida em todas as instâncias, se apresentou.
Moralmente esculachado com o apelido de “Lalau”, septuagenário, asfixiado economicamente com o bloqueio de seus bens e preso, desenvolveu um severo processo depressivo. O juiz do caso, o mesmo que havia decretado a preventiva, determinou sua remoção para o regime de prisão domiciliar, com agentes da PF na sua casa. O MPF não se conformou com a decisão que causou revolta nos que queriam o “combate à corrupção”. Manejou um recurso em sentido estrito (RSE) e impetrou um mandado de segurança no TRF da 3ª Região, que concedeu a medida liminar para atribuir eficácia suspensiva ao RSE.
Mas o STJ considerou ilegal essa decisão. Ao deferir a medida liminar no HC nº 17.804 (DJ 09/8/2001), o ministro Nilson Naves realçou a pletora de precedentes que apontavam a inviabilidade do manejo do mandado de segurança como um Habeas Corpus às avessas.
Idêntico estrépito causou a colocação da ex-primeira-dama do Rio de Janeiro em regime de prisão domiciliar pelo próprio juiz que decretara a sua preventiva. O TRF da 2ª Região concedeu liminar no mandado de segurança impetrado pelo MPF para dar efeito suspensivo ao RSE interposto, mas a ministra Maria Thereza de Assis Moura, com base em antigos e reiterados precedentes do STJ, cassou a decisão do TRF-2 (HC nº 392.806; DJe 28/3/2017).
A matéria, hoje, está sumulada pelo STJ tantos foram os casos julgados no mesmo sentido: “O mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público” (Súmula nº 604).
O que tem isso a ver com a condenação e prisão no caso da Boate Kiss? Muito.
Condenados os réus a penas superiores a 15 anos de reclusão, o juiz aplicou a nova regra do artigo 492, letra “e”, do CPP, introduzida pelo pacote “anticrime” (Lei nº 13.964/2019), que impõe a “execução provisória da pena”, com a expedição de mandado de prisão. Ocorre que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia concedido medida liminar em Habeas Corpus preventivo impetrado pela defesa de um dos réus para impedir a prisão imediata (HC nº 70.085.490.795).
Na decisão da fina lavra do desembargador Manuel José Martinez Lucas, além dos precedentes da própria Câmara e dele mesmo, colocou-se em evidência que estando o paciente em liberdade há vários anos e sem causar qualquer problema, a prisão logo após o julgamento pelo júri não se justificava, mesmo porque, as duas turmas especializadas em matéria penal do STJ firmaram o entendimento — correto, diga-se — de que é descabida a execução provisória da sentença ante a força da presunção constitucional de inocência (AgRg no RHC nº 130.301/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, DJe 20/9/2021 e, entre muitos outros, AgRg no HC nº 530.499/ES, relator ministro Rogério Schietti, DJe 28/5/2020).
A decisão do desembargador do TJ-RS poderia ser objeto de agravo interno, sim. Mas não poderia até ser alvo de um mandado de segurança para lhe conferir eficácia suspensiva, pois, além de não ser teratológica, o impediria a Súmula nº 604 do STJ e, seja como for, a liminar concedida está em consonância com a jurisprudência do STJ.
Aí vem, como costuma dizer Lenio Streck, o “drible da vaca”. Invoca-se o artigo 4º da Lei nº 8.437/92 e, a pretexto de existir uma questão constitucional, dirige-se a petição diretamente ao STF.
Ocorre que a lei em questão dispõe “sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público”. Vale dizer, se uma medida liminar afetar o poder público (administração), nos termos do seu artigo 4º, compete “ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público”.
O campo de incidência do referido dispositivo, como facilmente se percebe, é o do processo civil, e não o do penal. Não há ação movida contra o “poder público” no caso da Boate Kiss. Não é por acaso que o §1° do artigo 4º da Lei nº 8.437/92 assinala aplicar-se “o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado”. Tampouco o presidente do STF seria o órgão ao qual caberia “o conhecimento do respectivo recurso”.
De outro lado, malgrado o STF tenha precedentes da 1ª Turma afirmando a possibilidade de se executar a pena desde logo quando se trata de decisão emanada do júri, isso não outorgava competência direta ao STF para impor sua jurisprudência. O sistema de justiça impõe regras que devem ser observadas. É curioso que um tribunal que tenha uma súmula como a 691, a qual afasta a competência do STF para conhecer da Habeas Corpus impetrado contra liminar indeferida em outro tribunal superior, se permita conhecer de questão ainda não julgada no tribunal de origem, e nem pelo STJ. Pior, o mesmo STF, com invulgar constância, tem proclamado, até em Habeas Corpus, a impossibilidade de conhecer de matéria não apreciada pelas instâncias inferiores. Como pode conhecer, agora, diretamente da matéria posta pelo MP-RS?
Poder-se-ia dizer que há uma questão constitucional. Sim, mas qual? A relativa à interpretação do artigo 492, “e”, do CPP? Certamente, não. A da soberania dos vereditos dos jurados? Também não, pois o veredito não foi tangido pela liminar proferida pelo desembargador. A reserva de plenário, pois se tratou de reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo do artigo 492, “e”, do CPP diante da presunção de inocência? Também não! É que a regra processual tem recebido uma interpretação conforme à Constituição, e não o reconhecimento da sua inconstitucionalidade e, seja como for, nesse caso caberia eventual recurso extraordinário, mas somente após o julgamento do writ.
Sobra, pesa dizê-lo, a odiosa tirania monocrática, o arbítrio unipessoal contra a lei e a Constituição. A satisfação distorcida à opinião pública com a punição antecipada de condenados que ainda têm direito à apelação não representa nenhum prestígio à Justiça. Atropelar regras de competência e, pior ainda, invocar uma lei descabida para mandar prender é o “vale tudo”, é a antítese da justiça. Submeter “os outros” à prisão fora do figurino legal desmerece o Judiciário.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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