No Brasil, a leniência está estrangulando empresas; a delação premiada se distanciou da obtenção da verdade material; o compliance, muitas vezes, tem sido praticado apenas “para inglês ver”; e à arbitragem estão faltando transparência e celeridade. Esse cenário, nada animador, é desenhado pelo advogado e empresário Walfrido Warde.
Conhecedor profundo desses institutos, Warde está preocupado, como deixou claro em entrevista exclusiva à ConJur. No entanto, ele não perde as esperanças de ver essas ferramentas todas serem bem aplicadas no país. Para isso, segundo ele, é preciso que haja uma profunda reflexão sobre o tema, seguida de uma ampla reformulação das práticas.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Doutor Walfrido Warde, o senhor concorda com a ideia de que instrumentos importantes, como leniência, delação, compliance e arbitragem, estão num impasse?
Walfrido Warde — Eu acredito que todas essas técnicas visam a um propósito, precisam de especialização, precisam se submeter à reflexão e à regulação para atingir melhor os seus propósitos.
ConJur — Certo. O senhor acredita que esses instrumentos possam acabar comprometidos se não forem feitos os aperfeiçoamentos a tempo?
Walfrido Warde — Certamente, porque todo instrumento visa a um objetivo, um propósito, e quando é incapaz de atingir esse objetivo, e esse propósito se submete à críticas que podem inviabilizá-lo, podem levar a seu descarte, e todos eles são instrumentos importantes, cada qual, evidentemente, deve produzir efeitos distintos e se destina a produzir efeitos distintos. Nós podemos falar de cada um deles e eu poderei especificar e dizer com precisão e concretude quais são os problemas que eu vejo que precisam, em cada um deles, de tratamento. Tratamento que, se não for dado, a meu ver, pode inviabilizar esses instrumentos.
ConJur — Dentro, então, do seu ponto de vista, qual era a proposta inicial do acordo de delação? O que se objetivava e o que se tornou nessa primeira etapa da história da ferramenta?
Walfrido Warde — A delação premiada aparece em 2013 no Brasil, ela é um instrumento de coleta de prova, e ela aparece na Lei de Organização Criminosa. Basicamente, na lei que atribui ao aparato de controle do Estado novos instrumentos de coleta de prova, entre eles a colaboração premiada. Além de outros que são criados pela Lei de Organização Criminosa, e a finalidade é, evidentemente, aparelhar esse aparato de controle de Estado, melhorar a sua capacidade de detecção de ilícitos. A delação premiada, basicamente, é um incentivo à colaboração por parte de um dos partícipes de um ato ilícito. Até aí está tudo certo, mas como ela foi manejada no âmbito da operação “lava jato”, ela foi utilizada com réus presos, quase como um instrumento de tortura. Então o sujeito estava lá, numa prisão cautelar prolongada, que não podia estar prolongada, ficou preso por dois anos, dois anos e meio, e aí, no contexto dessa prisão, é pressionado a dizer às vezes coisas que não queria dizer, ou coisas que não estavam compassadas com a realidade, com a verdade dos fatos. Bom, nesse sentido, a delação premiada se distancia de uma técnica de obtenção da verdade material, da verdade real, e passa a ser uma técnica de condenação por condenação, uma técnica de acusação por acusação, uma técnica de espetacularização do sistema de Justiça e do aparato de controle e de punição estatais. Portanto, é esse desvio que precisa ser corrigido, e não é um retrocesso, ou seja, um reconhecimento de que houve abuso na operação “lava jato”, que nos levará à correção desse desvio, porque a lei aí está e ela não sofreu uma disciplina jurídica reparatória, não foi corrigida.
ConJur — O senhor chegou a ver n’O Globo de domingo (17/7) o descritivo de um possível livro ou de um anunciado livro do Emilio Odebrecht? Em que ele dá a opinião dele sobre o que foram as delações?
Walfrido Warde — Eu vi, eu vi a notícia.
ConJur — O que lhe pareceu ali? Ele parece que foi bastante enfático, não?
Walfrido Warde — Há muitos supostos delatores, pessoas que colaboraram, que relatam ter sofrido pressões para dizer coisas com as quais não concordavam e que não correspondiam à verdade, e que naquele momento disseram basicamente para sofrer um abrandamento, para se submeter, se sujeitar a um abrandamento da punição ou da promessa de punição, da mão pesada do Estado.
ConJur — Barganha…
Walfrido Warde — É… Isso não pode acontecer. Nós temos visto na prática norte-americana que o plea bargain, que é um instrumento parecido com a delação premiada, mas não é a mesma coisa, acaba produzindo injustiças brutais. Gente que não cometeu crimes, diante da perspectiva de uma punição certa, justamente num contexto de um punitivismo exacerbado, de um tribunal ou de um magistrado que certamente vai condená-lo, acaba dizendo coisas que não fez, acaba confessando crimes que não cometeu. E isso é o avesso da Justiça, a Justiça não pressupõe punir a qualquer custo, a Justiça pressupõe, basicamente, atribuir consequências justas, equilibradas e equânimes diante de condutas comprovadas, não de condutas que não foram comprovadas. Então, punir quem não cometeu o crime não faz sentido nenhum, nós vamos produzir uma sociedade ainda mais injusta.
ConJur — Há quem já diga que existe uma ditadura do compliance, ou há quem veja nesse instrumento um engessamento da Administração. Como o senhor vê isso?
Walfrido Warde — Vamos lá, o que a gente chama de compliance, ou melhor dizendo, integridade empresarial, nada mais é do que uma tendência, um movimento, de transferência dos mecanismos de detecção e de prevenção e de punição de ilícitos, transferência desses mecanismos do Estado para o particular. É uma revolução na disciplina jurídica das organizações empresariais. Ou seja, a lei atribui às empresas e às organizações empresariais a tarefa de derrotar, prevenir e de colaborar com o aparelho de controle do Estado para punir atos ilícitos dos seus membros, dos seus integrantes. E o faz com incentivo negativo e um incentivo positivo acoplados, ou seja, a empresa que não tiver esses mecanismos e for incapaz de detectar ilícitos vai ser punida de uma maneira mais drástica; aquela que tiver esses mecanismos e for capaz de detectar, prevenir e colaborar com o Estado diante de um ilícito causado por um de seus integrantes, terá punições abrandadas, essa é a lógica. O compliance não pode se transformar numa abstração, de um lado, ou seja, uma coisa para inglês ver, e de outro lado também não pode se transformar numa estrutura de engessamento das empresas, ou seja, as empresas perdem flexibilidade, perdem a capacidade de se adaptar às situações de mercado. Todavia, essa é uma tendência, no meu modo de ver, inexorável, ou seja, não vai haver retrocesso. Pode haver um alentamento, pode ficar mais lento o desenvolvimento disso, a operação “lava jato” acelerou esse processo de integridade interna ou integridade empresarial. Já com o fim da “lava jato”, e vistos os retrocessos que ela causou, há um alentamento, tornou-se mais lento o processo de integridade empresarial, mas ele é inevitável. O que nós precisamos é que ele, primeiro, seja efetivo, que ele considere as diversas naturezas dos diversos tipos de organização empresarial, os seus tamanhos, dimensões, complexidades e peculiaridades, você não pode querer que uma empresa de grande porte tenha um aparato de integridade igual à de pequeno porte, e vice-versa, e ao mesmo tempo você não pode usar esse aparato de integridade para burocratizar a empresa e torná-la menos competitiva, esse é o ponto.
ConJur — Muitas empresas têm feito manuais do que deve ser o compliance. Agora, não fica muito solto? Já que temos Código Civil, Código Penal e Código Comercial, não se deveria fazer algo um pouco mais objetivo para traçar molduras, parâmetros, diretrizes?
Walfrido Warde — Vamos levar à concreção da coisa, vamos ao caso concreto. Sobre assédio moral, há leis, por exemplo, no Direito do Trabalho que tratam do assunto. Para corrupção privada, há algumas normas do Ddireito do Trabalho que tratam do assunto. Para corrupção de agentes públicos, há normas do Direito Penal e do Direito Administrativo que tratam do assunto. Por exemplo, para violação de leis, de posturas de natureza ambiental, a mesma coisa. A grande questão é a seguinte: como a empresa, enquanto organização, deve se comportar em relação ao seu executivo, ao seu empregado, ao seu imposto? Qual é a postura dessa empresa quando ela tem um administrador, um executivo, um controlador, um preposto, um empregado, que se engaja numa conduta que viola, por exemplo, as normas de Direito Ambiental, de Direito Concorrencial, de Direito Administrativo, do Trabalho? Como ela age para, primeiro, detectar essas violações; em segundo lugar, prevenir essas violações; e, em terceiro, quando detectar? Como ela colabora com o Estado? Ela conta para o Estado? Ela vai lá e denuncia o cara? O seu empregado, o seu preposto, o seu controlador? É esse o ponto, de que existem normas que disciplinam essas condutas não há dúvidas, mas como a empresa tende a agir, como ela tem de se organizar para detectar, para prevenir, evitar esses atos, e, quando eles acontecerem, como ela deve agir em relação ao aparato de controle do Estado. Esse é um movimento inevitável, isso vai continuar acontecendo, e por quê? Porque o Estado entendeu e concluiu que a atividade empresarial era pungente demais e que ele não consegue fiscalizar tudo, e que tem de instrumentalizar as empresas para que elas fiscalizem no seu lugar. E criou mecanismos de sistema de incentivo e desincentivo para que as empresas façam isso, essa é uma tendência inevitável. O que nós temos é de fazer com que essa tendência inevitável não crie um gigantismo tão pesado para as empresas, que elas percam competitividade, é esse o ponto, e, mais do que isso, para evitar cinismos e hipocrisias, coisas que são simplesmente aparências.
ConJur — O G-8, 20 anos atrás, começou a trabalhar em fórmulas de repartir com a iniciativa privada até o poder de polícia, de fiscalização e tudo mais. Então, olhando isso como um todo, o senhor acha que já está amadurecida essa partilha de responsabilidades ou o Estado começou a se acomodar e está delegando todas as suas funções, coisa que a gente pode ver também na área da saúde, na área da educação? O senhor acha que vivemos um momento pendular ou vai seguir do jeito que está essa transferência de atribuições?
Walfrido Warde — Nós temos de nos decidir sobre as funções do Estado, e essa não tem de ter uma decisão de gabinete, tem de ser uma decisão de soberano, do povo. Ora nos batemos por um Estado mínimo, ora nós queremos que o Estado seja tentacular, gigante, ora nós entendemos que o Estado não deve praticar determinados atos, ora entendemos que deve asfixiar o indivíduo. Essa precisamente é a decisão que deve ser tomada aqui, quando nós falamos de política de integridade, estamos falando de transferência de funções estatais para o particular. O que me parece ser problemático nessa transferência não é exatamente uma redefinição de funções estatais, é como se estabelece a relação entre empresa e Estado nesse aspecto particular. No meu modo de ver, nós estamos tendo abstrações, cinismos e hipocrisias, ou seja, compliance para inglês ver, e nós estamos tendo punições de empresas que importam em destruição do cenário empresarial, o que para mim é muito grave. Eu acho que é ótimo transferir para as empresas determinadas funções de prevenção, detecção e colaboração com o Estado diante de ilícitos dos seus partícipes, isso é parte de um movimento, como eu disse, inevitável e que não comporta retrocessos, que vai avançar, vai amadurecer. Agora, não vale destruir empresa no meio do caminho, porque se nós olharmos para as melhores práticas de compliance do mundo, elas levam à preservação empresarial, elas levam à manutenção das organizações empresariais, que são fundamentais para a competitividade dos países, fundamentais para a preservação do conteúdo nacional, de postos de trabalho, que estão minguando, diga-se de passagem, com o avanço das tecnologias, e também para a preservação da capacidade de preservação dos Estados. Nós não podemos fazer como temos feito no Brasil, destruindo empresas porque um ou outro praticou ato de corrupção, violou normas e posturas estatais, isso não faz sentido.
ConJur — Quanto à arbitragem, existe uma polêmica, talvez um falso dilema, já que o que se discute não é acabar ou manter a arbitragem, trata-se de discutir esse momento de inflexão e esse volume gigantesco de questionamento judicial de arbitragens. O que o senhor acha do projeto que altera a Lei da Arbitragem?
Walfrido Warde — Eu acho que a gente tem de dar um passo atrás e entender como premissa que a arbitragem é uma importante técnica de solução de conflitos e está inserida nesse contexto de confissão estatal das suas incapacidades, das incapacidades do Estado. Nós temos um grau de litigiosidade tão elevado, e nós temos um grau de complexidade de determinados litígios que é igualmente tão elevado, que o Estado confessa ser incapaz de tratar de tudo isso. O Poder Judiciário confessa que não é capaz de dar conta dessa altíssima litigiosidade e que há determinados litígios que são tão complexos que o melhor é que especialistas tratem dele. Ou seja, os magistrados, no seu nível de especialização, que tem limites, não dão conta de tratar desses litígios. É isso que subjaz ao aparecimento da arbitragem como técnica de solução de conflitos altamente complexos. E, nesse contexto, as partes, os litigantes, confessam para juízes privados, contratados pelas partes, a tarefa de resolver conflitos, é basicamente o que acontece, e a arbitragem é um instrumento muito útil, e é por isso que ele se popularizou e é por isso que ele alcançou o êxito que alcançou. Então, em primeiro lugar, a arbitragem é boa, é útil, é benfazeja, tem sucesso, tem utilidade. Quando a gente fala de melhorar a arbitragem, não está falando de acabar com ela, nós estamos falando de torná-la um instrumento útil aos seus propósitos. Há um certo consenso na comunidade administrada, ou seja, clientes da arbitragem, aqueles que se submetem à arbitragem para solucionar seus conflitos, que ela tem problemas. E quais são os dois grandes problemas? Transparência e celeridade. Transparência das relações entre árbitros, partes e advogados, e rapidez. Como os árbitros privados não são os juízes, às vezes eles têm receios que os juízes não têm, receios de praticar atos com a desenvoltura de um magistrado, de que sejam, ao fim e ao cabo, revogadas ações anulatórias, ou seja, em um contexto de um controle estatal dos atos dos árbitros. Então, isso talvez torne morosa a arbitragem. Então, de um lado nós temos de empoderar os árbitros; de outro lado, nós temos de submeter os árbitros a controles a que estão sujeitos os magistrados, e conferir absoluta transparência e entender o que é um conflito real nas relações entre árbitro, parte e advogado da parte e o que não é um conflito real, o que não é um problema, e submeter essas relações a um grau de transparência máximo, colocar sob a luz do sol para dar conforto a todo mundo. E por quê? Porque os árbitros são profissionais que em determinado momento vestem o chapéu de árbitro, em determinado momento vestem o chapéu de parecerista, em outro momento vestem o chapéu de advogado, e por aí vai, e se relacionam com os advogados das partes, às vezes, e concomitantemente se relacionaram no passado, ou se relacionaram com a própria parte. Transparência é fundamental na arbitragem, sobretudo porque a arbitragem produz sentença que produz efeito entre as partes, que é irrecorrível, não tem segundo grau de jurisdição. Quando a gente fala de transparência, nós estamos falando basicamente de ter certeza de que se produziu uma decisão absolutamente independente, que vinculará as partes, e uma decisão que está extirpada de quaisquer conflitos.
Há a impressão, e quem disser o contrário não está falando a verdade, de que é preciso melhorar em matéria de transparência e de celeridade, pelo menos nesses dois quesitos. E qualquer legislação que venha para produzir melhoras nesse sentido, desde que sejam razoáveis, desde que sejam consensáveis e desde que sejam amplamente discutíveis, será benéfica. Se nada for feito e essa impressão se aprofundar, de que há procedimentos arbitrais não completamente transparentes e que a arbitragem está tão morosa ou até mais morosa do que o processo judicial, a arbitragem como técnica de solução de conflitos complexos vai ser comprometida, não tem muita discussão sobre isso, nós temos de parar de colocar de um lado os defensores da arbitragem, e do outro os detratores da arbitragem. Não é nada disso, nós trabalhamos com arbitragem e temos interesse de que o instrumento seja depurado, seja melhorado. Esse é o ponto.
ConJur — Nós tratamos de três ou quatro tópicos que têm em comum o fato de o Estado abrir mão ou admitir de público que ele não tem capacidade de dar conta dessas complexidades de que estamos tratando. O desmonte do Estado na área das suas funções constitucionais vem de décadas e não é um fenômeno unicamente brasileiro. Mas, no caso do Brasil, o senhor acredita que essa divisão de serviço leva o país ao chamado Estado mínimo, um Estado cada vez menor?
Walfrido Warde — Não acredito. O que eu acho é que nós estamos percebendo ao longo dos anos, das décadas, que determinadas funções estatais podem ser melhor exercidas, e seus objetivos melhor alcançados, numa articulação entre o Estado e o particular, é basicamente isso. Mas sob a coordenação e a ordenação estatais. Não estamos falando de Estado ausente, estamos falando do Estado coordenando determinadas atividades que são suas numa articulação com o particular, ou seja, de quem é atividade de controlar, eventualmente, ilícitos, de punir ilícitos do particular? É do Estado. Mas ele pode fazer isso de uma maneira mais eficiente num nível sociológico, ou seja, no nível da observação das minúcias, no nível das microrrelações, se ele estiver articulado com as empresas. De quem é a tarefa de pacificação social por meio de sentenças e decisões judiciais? É do Estado, mas ele reconhece que determinadas relações são tão complexas que pode ser que o juiz outorgado não seja o melhor solucionador do problema, talvez haja um especialista naquele assunto que possa fazê-lo melhor, todavia sob a supervisão estatal e sujeito ao escrutínio do Poder Judiciário. Isso não quer dizer um retrocesso ou a diminuição do Estado, ao contrário, tem a ver com especialização do Estado, tem a ver com a busca de soluções mais eficientes na articulação do Estado e o particular.
ConJur — Estou refletindo sobre essa última frase…
Walfrido Warde — Talvez a gente possa falar um pouquinho sobre a leniência.
ConJur — Leniência, tema importantíssimo, porque aí estamos falando de desenvolvimento do país, certo? Com o isolamento social, foram criadas proteções contra a quebra de empresas, e agora essas proteções vão ser levantadas, e a necessidade de reorganizar a economia e as empresas está ligada diretamente ao desenvolvimento, que é o que todo mundo quer. Nesse contexto, o que um bom trabalho de leniência ajuda? E de que forma ele não vai ajudar ninguém?
Walfrido Warde — O acordo de leniência é o negócio jurídico entre a empresa e o Estado para que a empresa colabore eventualmente denunciando atos dos seus empregados, de controlador, administrador, preposto, os atos ilícitos, para receber um benefício em contraprestação. Foram celebrados acordos de leniência no contexto da “lava jato” de maneira tardia, as empresas não sabiam com quem celebrar, a lei falava que no nível da União era com a CGU, mas elas foram obrigadas a celebrar acordos — no meu modo de ver de maneira equivocada e não legítima — com o Ministério Público apenas, e acordos escorchantes, sob o ponto de vista pecuniário, valores exorbitantes, justamente porque elas estavam prostradas: ou celebravam aqueles acordos ou quebravam, muitas delas estão virtualmente mortas, dificilmente vão ser recuperadas porque os acordos foram celebrados de maneira tardia, porque elas celebravam com o Ministério Público, com a CGU, e depois tinham de celebrar outro com a GCU, aí havia problema concorrencial e tinham de celebrar com o Cade, aí a empresa era companhia aberta com ações na Bolsa e tinha de celebrar com a CVM, ou então era instituição financeira e tinha de celebrar com o Banco Central, ou seja, o Estado multifalho, esquizofrênico, com valores altíssimos, impagáveis, muitas vezes baseados em ilícitos que ao fim não redundaram em denúncias por parte do Ministério Público. Quer dizer, confessaram coisa que não foi denunciada para o Ministério Público, ou se foi denunciada não redundou em condenação, em juízo, e foi considerado aquilo para fins de cálculo de multa, indenização.
Ou seja, no meu modo de ver, os acordos de leniência da “lava jato” deveriam ser revistos sob o ponto de vista das escorchantes obrigações pecuniárias que se impõem e a que se sujeitam as empresas que os celebraram. Nós vamos, com isso, continuar esse movimento de quebra de empresas, sem fazer a distinção entre empresa e empresário, uma distinção que é fundamental. Nenhum país do mundo, para punir corrupção e punir ilícitos, quebrou suas empresas, e nós estamos quebrando as empresas no Brasil, isso é importante. O acordo de leniência precisa de uma disciplina pormenorizada, precisa de uma racionalidade, precisa ser pagável, não adianta fazer acordo de leniência para mostrar na televisão que fizeram acordo de bilhões de reais, e que quebraram empresas e diminuíram o PIB em centenas de milhões de reais, diminuíram a arrecadação, diminuíram empregos, diminuíram conteúdo nacional… Não faz sentido algum, isso é burrice, isso é dar tiro no peito.
ConJur — No acervo judicial brasileiro, 15% das questões estão na esfera criminal e 85% estão na esfera civil. A corrupção, assunto que gera notícias o ano inteiro, representa, segundo dados do CNJ, 0,03% dos problemas do Brasil, e não se tem notícia de que os valores sejam tão significativos quanto aparecem nas notícias. O maior bloco de problemas dos brasileiros está nas relações de consumo, está nas relações de trabalho, o tráfico de drogas já passou de um milhão de processos no Brasil… Essa supervalorização da matéria criminal, e do tema específico corrupção, não é um equívoco? Isso não desobedece o ranking dos problemas brasileiros?
Walfrido Warde — Temos de ter em mente o seguinte: qual mal a corrupção causa? Corrupção é um grave problema para fins de aprofundamento da desigualdade social porque ela é uma técnica de manutenção e obtenção de poder econômico. Na realidade, a corrupção, no fim do dia, serve à obtenção de poder de mercado, as empresas corrompem agentes públicos, basicamente, para prevalecer em relação aos seus concorrentes, para ter benefícios do Estado em detrimento dos seus concorrentes. Isso lhes dá poder econômico e, evidentemente, aprofunda o gasto social, e a desigualdade social permite que determinadas empresas e determinados agentes econômicos capturem o Estado. Esse é o problema da corrupção. Agora, quantitativamente, a corrupção, se a gente olhar para a “lava jato”, vai ver muito menos corrupção e muito mais caixa dois, muito menos propina e muito mais financiamento da política. Nós precisamos ter claro o que é ato ilícito na interação entre o público e o privado e o que faz parte da democracia na integração entre o público e o privado, e isso não está claro no Brasil. Está longe de estar claro porque nós não temos uma disciplina racional da interação público-privada, do financiamento da política, do financiamento de campanhas, o que é certo, o que é errado. A proscrição do financiamento empresarial de campanha é um grave equívoco cometido pelo Superior Tribunal Federal na Adim 4.650, eu tenho certeza de que há ministros que estão arrependidos desse julgamento. Nós precisamos rever isso para que a política no Brasil não seja financiada por organizações criminosas, sejam financiadas por empresas com CNPJ, endereço, com sede e sob regras. Achar que o dinheiro público financia campanha no Brasil, exclusivamente, é uma ilusão.
Por outro lado, há de fato um punitivismo, que leva a um encarceramento em massa, que deve ser observado. Nós temos no Brasil grande parte da população carcerária, pelo menos 200 mil, 300 mil pessoas presas, em prisões cautelares, e no contexto do tráfico de drogas, do pequeno tráfico de drogas. Nós temos problemas no Brasil de alta litigiosidade, em que os procuradores de Estado e o Ministério Público são obrigados a recorrer, às vezes, de matérias pacificadas, de decisões que estão pacificadas porque o Tribunal Federal já decidiu, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, e eles, por um dever de ofício, são obrigados a recorrer, e isso aumenta a litigiosidade. Então, nós precisamos buscar causas da corrupção, a corrupção é um problema, e nós não temos tratado as causas da corrupção. E, de fato, a corrupção, sob o ponto de vista do acesso ao Judiciário, é um problema menor do que outros problemas que também têm de ser tratados nas suas causas.
ConJur — Então devemos entender que esse 0,03% realmente tem essa importância toda que a imprensa dá a ele?
Walfrido Warde — Ele tem uma importância grande, mas vem sendo muito maltratado, no meu modo de ver, pela imprensa e pela população em geral, é tratado de uma maneira equivocada. É incompreendido. A corrupção é uma questão incompreendida.
ConJur — É que, de cada dez manchetes, dez falam de corrupção…
Walfrido Warde — É um problema grave, não é um pequeno problema.
Entrevista publicada originalmente no Consultor Jurídico.
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