1. Pequena introdução necessária
Em várias sustentações junto ao Supremo Tribunal, assim como em livros e textos, tenho feito a defesa da Instituição, dizendo “sou amicus da Corte e não inimicus”, o que pode ser visto na defesa que eu e tantos juristas temos feito em relação aos ataques que o Tribunal tem sofrido. Quem acompanha meus textos, sabe bem do que falo. Tenho apontado mais do que sua relevância; tenho apontado o Supremo como condição de possibilidade da democracia no país.
Mutatis, mutandis, faço-o aqui em relação ao Superior Tribunal de Justiça. Como amicus epistemicus da Corte. Assim deve ser lido este texto. Um amicus do Tribunal, que o reconhece como guardião da coerência e da integridade do direito.
Há uma antiga “lei” que não deve ser violada: a de David Hume, pela qual “de um é não se deve tirar um deve ser”. Dworkin chama isso de “princípio Hume”: nenhuma proposição sobre aquilo que é pode, por si mesma — isto é, sem algum juízo de valor “escondido” — para uma conclusão sobre aquilo que que deveria ser o caso. A guilhotina do escocês é implacável. Isto serve para evitar o senso comum, algo como “há muita violência, logo, devemos aumentar as penas”.
Ou, ainda, “há excessos de recursos especiais, logo, devemos evitar que eles subam”. E, logo, devemos construir novas barreiras. De um “é” você não tira um “deve”. É preciso introduzir uma justificativa para essa prescrição, não se passando automaticamente de uma constatação fática à criação de uma norma como se fosse algo auto evidente.
2. A PEC da relevância e a guilhotina de Hume
Por que escrevo sobre isso? Porque o ministro-presidente do STJ, Humberto Martins, conforme divulgação da Corte, defendeu, há dias, a “PEC da Relevância” (sic) como uma medida fundamental para racionalizar o sistema recursal brasileiro, verbis: “O objetivo central da proposta é fazer com que o STJ deixe de atuar como terceira instância — revisora de processos cujo interesse muitas vezes está restrito às partes — e exerça de forma mais efetiva o seu papel constitucional”.
O artigo 105 passa a ter a seguinte redação:
§ 1º – No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.
Traduzindo, isto quer dizer que, assim como já acontece no STF com a repercussão geral, agora o STJ passaria a ter a sua. Nem toda violação de lei federal tem importância tal que mereça o pronunciamento do Tribunal. Segundo o presidente, com a PEC evitar-se-á o julgamento de questões que afetam apenas o interesse das partes, sem maiores implicações na interpretação do direito federal.
Trata-se de mais um obstáculo. Todos sabemos das dificuldades extremas de se fazer “subir” um REsp. Atravessar um fosso de jacarés, matar um leão e, ainda por cima, desviar-se das balas dos robôs que atiram nas palavras chaves. Convenhamos, é muita coisa. A retranca é de fazer inveja à escola gaúcha de futebol, numa metáfora ludopédica.
Agora, mais uma barreira seria oposta. Ora, passados cinco anos do CPC, ainda não se resolveu uma situação corriqueira prevista no Código: diante da primeira análise de admissibilidade de um recurso especial na origem, o CPC/2015 disciplinou o cabimento OU de agravo interno (art. 1.021) OU de agravo em recurso especial (art. 1.042), a depender do conteúdo da decisão.1
3. E a Súmula 7? Fato versus Direito?
Isso sem considerar o clássico problema advindo da súmula 7. E isso é coisa antiga. Recentemente fiz o prefácio da nova edição do livro Por que acredito em lobisomem2, em que uma causa que iniciou na década de 40 do século XX acabou apenas 40 anos depois. E o ponto era “discussão do requisito do recurso extraordinário” (à época, era matéria do STF).
O advogado peleou anos. Queria mostrar — e até conseguiu no primeiro julgamento do STF — que a Corte se pronunciasse sobre a qualidade jurídica dada ao fato, coisa bem diferente da (re)apreciação do próprio fato.
Sabe-se que o Tribunal Superior não pode rediscutir os fatos ou a prova sobre a existência desses fatos. Porém, o Tribunal pode examinar se a apreciação jurídica dessa prova foi feita de forma adequada. Por exemplo, no caso relatado no livro, o causídico não queria discutir se uma senhora de 80 anos era incapaz; ele queria discutir se o Tribunal do Estado tinha feito uma correta interpretação do Código Civil sobre o que ocorrera.
Para se ver como a matéria é antiga, no então RE proposto pelo advogado, ele tentava explicar que, se em um acórdão se afirma que agiu sem culpa o motorista que dirigia seu veículo a 120 km por hora, quando colidiu com outro que vinha em preferencial, não se irá dizer que contra tal decisão não cabe recurso extraordinário [hoje REsp], porque se cuida de matéria de fato. O que há aí é manifestamente erro quanto ao conceito jurídico de culpa, o que significa erro da valorização jurídica do fato.
O exemplo é válido até hoje. Este é apenas um dos problemas. Com efeito, já nem basta superar esse ambíguo conceito da dicotomia “matéria de direito-matéria de fato”; agora, vingando a PEC da Relevância, ainda terá que ser feita a demonstração de que a matéria transcende a relação entre as partes.
Ocorre que estamos indo para além do problema, que nunca foi resolvido — e que, embora, corretamente compreendido, seja um falso problema do ponto de vista filosófico —, da dicotomia fato-direito. Agora, é preciso demonstrar a “relevância das questões de direito”. O que é isto — a relevância? Relevância das “questões de direito”? Alguma questão de direito não é relevante?
4. O que é “relevância” e como se afere o que é “relevante?
Como seria feito isso? O que é relevante? Haverá um “relevantômetro”? Em um país como o nosso, corre-se o risco de se atribuir relevância apenas às causas de grandes dimensões do “andar de cima”; as causas da patuleia, que hoje, é bem verdade, ficam restritos às ilhas das Turmas Recursais, ficam com chance zero de serem discutidas no Tribunal da Cidadania. Ou não tem sido assim na história da República? A respeito, escrevi há alguns dias uma crítica à proposta de alteração da Resolução 75 do CNJ e à consequente inclusão de matérias como pragmatismo, análise econômica do direito e economia comportamental nos concursos de juiz. E aqui é que a porca torce o rabo: Caso tal alteração curricular ocorra em definitivo e a PEC objeto deste texto seja aprovada, teremos, portanto, magistrados consequencialistas a interpretar o conceito de relevância.
Alguma dúvida sobre o resultado? Seria a PEC em comento mais uma decorrência da consagração do pragmatismo e do consequencialismo no Direito brasileiro implementada pela LINDB, no sentido em que assim considera o Ministro Luiz Fux3?
5. Como aplicar aos demais processos esse certiorari? Como se faz distinguishing?
Ainda: estabelecido o critério da relevância, como aplicar aos demais processos? Por subsunção? Ou por inteligência artificial? Junta todos os casos em uma pilha (que na verdade, será uma pilha virtual)? E como se faz o distinguishing entre as “relevâncias”? Ainda mais sobre as relevâncias das “questões de direito federal”. Qual seria a questão de direito federal irrelevante?
Mais: recusando-se o REsp por essa nova “cláusula”, estar-se-ia declarando uma questão de direito federal infraconstitucional irrelevante? E, com a moda dos precedentes, esse juízo é vinculante? O STJ vai, prospectivamente, dizer aquilo que é e aquilo que não é “relevante”? Em questões de direito?
Preocupa-me a violação da lei de Hume. Estamos de acordo com o “é” (há muitíssimos recursos); porém, disso não resulta que devemos passar a navalha nas pretensões dos recorrentes. Antes da causalidade “automática” do raciocínio combatido pela lei de Hume, temos de refletir sobre as razões do “é”. Por que há tantos recursos especiais? De um lado, não cumprimos o artigo 926, que obriga a que os tribunais julguem com coerência e integridade. Claro, menos aplicação do 926, mais divergências jurisprudenciais.
De outro, quanto mais fragmentações nas decisões, com julgamentos que insistem em teses como livre convencimento, etc, mais divergência teremos. Acrescente-se que o Estado autoriza mais e mais faculdades. Mais causídicos, mais causas. Mais julgamentos díspares e fragmentados, mais agravos, embargos, apelações e REsps.
Respeitar o 926 — ou seja, a coerência e integridade; ou seja, uma exigência legal — não seria um bom começo?
Concordar acerca do problema não nos leva automaticamente a concordar com uma solução proposta. Hume ajuda nisso. E nos livra das falsas dicotomias.
6. Problemas funcionais… e o que dizer dos problemas estruturais?
A PEC trata de um problema, digamos assim, funcional. Mas, e o que dizer dos problemas estruturais? Por que, a propósito, não se pensa, por exemplo — e já no meu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, em 1999 eu tratava desse ponto — em aumentar o número de integrantes do STJ. Para registro, o órgão similar ao STJ na Itália possui 350 membros, em um país com um terço da população do Brasil. Em Portugal, com população do tamanho do RS, o STJ (lá tem essa sigla igual) possui 60 integrantes. Isso não quer dizer nada a nós, brasileiros? E isso não é violar a Lei de Hume: meu argumento de valor até aqui é claríssimo. Uma Corte com o dobro dos integrantes não seria um passo importante na prestação jurisdicional?
7. Uma metáfora sobre causas e efeitos
Lembro que, há anos, a FIFA estava preocupada com a falta de gols. E propôs o aumento das goleiras. Escrevi uma carta ao presidente da entidade, propondo o contrário: que se proibissem os goleiros de terem mais um metro e sessenta. Não recebi resposta, mas o projeto foi arquivado. Ainda peguei leve: por que não tirar o goleiro de uma vez?
No caso da PEC da Relevância, antes dela teríamos tantas coisas a discutir antes de, de forma radical e, porque não dizer, simplista, criar mais uma barreira à aplicação correta do sentido de lei federal, direito fundamental de cada cidadão.
8. O que será mais relevante? A causa ou o direito sobre a causa?
Tudo isso para nem tocar mais a fundo no velho problema da “vagueza” e da “ambiguidade” por trás da ideia de “relevância”. Sempre haverá um certo grau de “vagueza” e “ambiguidade” nos textos de lei — para usarmos os termos comuns —, ou, de outro modo, nenhum código conterá todas suas hipóteses de aplicação. Mas aí precisaríamos antes de uma doutrina consolidada que discutisse as condições de possibilidade para essa atribuição de relevância, oferecendo critérios epistêmicos-normativos e, sobretudo, jurídicos¸ para (de)limitar a atuação dos tribunais. Para isso que serve a doutrina.
Na prática, o que teríamos? Compêndios jurisprudenciais repetindo o que é “relevante” e o que não é “relevante”. Claro, depois da decisão do STJ.
9. Temos de tratar de efetividade quantitativa ou qualitativa?
Com todo o respeito, mas será que a única ideia para lidar com os problemas do Judiciário é sacrificar direitos e garantias fundamentais dos cidadãos? E, nesses sacrifícios, será que os mais penalizados serão sempre os mais vulneráveis e invisíveis, aqueles que não conseguem sensibilizar os tribunais sobre a relevância de suas causas?
Voltando à lei de Hume: concordamos que o Judiciário Brasileiro está em crise, mas isso não quer dizer que devamos passar automaticamente a cortes mal refletidos como solução óbvia do problema.
10. Há soluções? Claro que sim!
Vejo, no mínimo — e há muitas — questões a serem ajustadas:
- Melhorar o contraditório e a fundamentação na tomada de decisões, reduzindo a ocasião para recursos e mandando um sinal para a comunidade jurídica de que a justiça não funciona de modo lotérico e, uma vez que isso fique claro, não valeria a pena insistir em teses descabidas (o quero dizer com isso é que os artigos 926 e 489, parágrafo primeiro, têm essa função e não estão sendo utilizados devidamente; não esqueçamos que o artigo 489 está espelhado no 315 do CPP, além de que o artigo 926 do CPC deveria ser aplicado em todos os ramos do direito — ou alguém tem dúvida de que a aplicação do direito deve ser coerente e integra?)
- O “sistema de precedentes” tem de ser reexaminado; isto porque a construção-edição de teses acaba construindo conceitos abstratos (como se fossem leis), perdendo-se o DNA do ou dos casos concretos;4
- Se for para fazer “restrições de âmbito defensivo, similar à jurisprudência defensiva” e criar obstáculos no acesso à Justiça, que eles sejam sustentáveis epistemologicamente e proporcionais, evitando cobrar toda a conta pela sobrecarga do Judiciário aos litigantes eventuais e muitas vezes hipossuficientes, que estão longe de ser os principais responsáveis por nossos problemas.
- Conforme sugestão da OAB, conforme explicitado na sequência, deve-se considerar relevância presumida a causa de natureza penal, sobre improbidade administrativa, causa cujo valor seja superior a 500 salários mínimos e “causa que possa gerar inelegibilidade” — sem prejuízo de que lei ordinária estabeleça outras delas.
11. O estado da arte do causídico brasileiro
Diante de mais essa PEC, fica aqui meu desabafo: é realmente lamentável a situação do jurista brasileiro. Vivemos num cenário de extrema precariedade na prestação jurisdicional e estamos sempre tendo que lutar para que ele não se torne ainda pior. As propostas de reforma, com essa lógica de “cima para baixo”, trazem sempre a tônica simplificadora. Não apostamos numa cultura jurídica dialogada como modo de racionalização das decisões e dissuasão contra demandas aventureiras (sobretudo dos grandes litigantes). Ao invés disso, apelamos para modernizações autoritárias: mais poder e discricionariedade para os órgãos de cúpula, mais autoridade para o Leviatã hermenêutico da vez.
12. A posição da OAB
A Ordem dos Advogados do Brasil, em posição já em 2017 (quando a PEC surgiu) posicionou-se contra a alteração (aqui). A posição pode ser vista em entrevista de Nabor Bulhões (aqui). Na matéria consta também
a proposta que o Conselho Federal da OAB levou ao Senado, em que pede que, pelo menos, a relevância seja presumida em algumas hipóteses: causa de natureza penal, sobre improbidade administrativa, causa cujo valor seja superior a 500 salários mínimos e “causa que possa gerar inelegibilidade” — sem prejuízo de que lei ordinária estabeleça outras delas.
13. Se a PEC vingar, nem RESP subirá por meio de agravo!
A solução encontrada por meio da PEC é a supressão de direitos em nome da eficiência. Em um país como o Brasil, isso é muito perigoso, porque, do juiz de primeiro grau até alguns ministros do STF, essa ideia de eficiência em detrimento do réu tem ganhado cada dia mais força. Cito aqui como exemplo um caso recente: o juiz recebeu a denúncia e marcou audiência de instrução antes da Resposta à Acusação. Justificou em nome da eficiência e da razoável duração do processo. Sim, isso mesmo! Para isso, sacrificou o contraditório e a presunção de inocência. Ou seja, é explícito: a defesa do réu é mera formalidade.
E assim vamos.
1 A lembrança vem de excelente texto do advogado Daniel Ustarroz, publicado no Espaço Vital de 19.10.2021.
2 Livro de Serafim Machado, Editora Rigel, 2021 (prefácio de minha lavra).
3 Ver, nesse sentido, a crítica à proposta de alteração da Resolução 75 e inclusão de disciplinas nos concursos de juiz <https://www.conjur.com.br/2021-set-23/senso-incomum-cnj-mudar-concurso-juiz-boa-cursinhos>
4 Nesse sentido, Streck, L.L. Precedentes Judiciais e Hermenêutica. 3ª. ed. Salvador, Jus Podium 2021.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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