Por Pierpaolo Cruz Bottini
A prática da lavagem de dinheiro supõe sofisticação. Ainda que existam práticas rudimentares e primitivas de ocultação de dinheiro sujo, os atos de dissimulação, em regra, envolvem complexas operações, transações e estruturas empresariais.
Nesse contexto, peculiar é a situação do advogado, em especial daquele responsável pela orientação jurídica na criação de formas e estratégias para o encobrimento de valores ilícitos. Sua atuação é coberta pelo sigilo que permeia a relação advogado/cliente ou o profissional tem o mesmo dever dos operadores financeiros, contadores e assessores imobiliários, de comunicar às autoridades públicas as operações suspeitas de lavagem de dinheiro das quais tenha conhecimento?
A União Europeia, em suas diretivas, tem considerado que notários e outros profissionais forenses independentes, como advogados, quando participem de transações financeiras ou imobiliárias, atuando em nome de clientes ou prestando assessoria, têm o dever de colaborar com a prevenção à lavagem de dinheiro, comunicando a existência de atos anormais.
No Brasil, a lei de lavagem de dinheiro considera que o dever de informar atos suspeitos de lavagem de dinheiro às autoridades públicas é imposto a todos aqueles que prestam, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações de compra e venda de imóveis, gestão de ativos, criação ou gestão de sociedades, dentre outras. Dentre estes, aparentemente, estão os advogados que atuam nas áreas mencionadas, uma vez que prestam “assessoria” aos seus clientes.
Ocorre que o advogado tem uma peculiaridade em relação aos demais consultores mencionados na lei: sua atuação somente é possível diante de uma estrita confiança entre ele e seu cliente. Ao contrário de outras atividades, essa relação é o âmago da prestação do serviço, sem a qual não existe qualquer atuação possível. A orientação ou defesa jurídica exige a transparência completa do cliente, o compartilhamento de documentos, contas, a exposição de condutas, para que o advogado possa desenhar uma estratégia lícita e eficaz de defesa ou informação. Transformar esse profissional em longa manus do Estado, em informante institucional, não afeta lateralmente suas atribuições, mas diretamente o alicerce de sua atuação profissional.
Justamente por isso, o Estatuto da OAB (Lei 8.906/1994) prevê a inviolabilidade do escritório, local de trabalho, instrumentos e correspondência do advogado, protegendo documentos, mídias, objetos e informações entregues pelo cliente, a não ser que o causídico seja formalmente investigado como partícipe do crime praticado pelo cliente.
Essa inviolabilidade prevista em lei é incompatível com o dever de informar. Não faz sentido prever que as informações do cliente estão protegidas até mesmo de ordem judicial de busca e apreensão e, ao mesmo tempo, obrigar o profissional a entregá-los — sponte propria — às autoridades públicas, mesmo na ausência de investigação ou ordem judicial.
A aparente contradição entre as leis é resolvida pela prevalência da regra da inviolabilidade. A lei de lavagem de dinheiro estabelece obrigações para “qualquer consultor”, enquanto o Estatuto da OAB regulamenta a atividade de uma espécie concreta de consultoria: a advocacia. Ao ser mais específica, a última tem precedência sobre a primeira para definir a conduta dos advogados.
Isso significa, em outras palavras, que advogados não têm o dever de comunicar atos suspeitos praticados por seus clientes. E essa prerrogativa abrange todas as atividades típicas da advocacia, seja ela contenciosa — de representação — ou consultiva, pois todas reguladas pelo Estatuto da OAB. Por óbvio não se estende àquele que, apesar de ser advogado, não pratica atos típicos da profissão, como o corretor de imóveis, o representante administrativo de sociedades no exterior, o contador, dentre outros.
No entanto, a inexistência do dever de comunicar não torna a advocacia um porto seguro para práticas de lavagem de dinheiro, nem significa a impunidade do profissional que contribui com a ocultação de bens. Uma coisa é exercer a advocacia, orientar o cliente, representá-lo. Outra é colaborar dolosamente para a ocultação de bens derivados de crimes. Os limites entre tais atividades ainda precisam ser definidos, há um espaço impreciso onde permeia a insegurança jurídica e onde a OAB talvez deva intervir para definir diretrizes, orientações e regras técnicas profissionais.
Mas, uma coisa é certa: seja qual for a conduta do advogado, no exercício de suas atividades típicas, inexiste o dever de colaborar com as autoridades para a prevenção da lavagem de dinheiro. O combate ao delito não vale o custo de macular uma relação de confiança essencial para a defesa, para o contraditório e, enfim, para o Estado de Direito.
Artigo publicado originalmente em O Globo.
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