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SL 1395: As consequências da decisão do STF são cadeias lotadas de presos sem condenação

SL 1395: As consequências da decisão do STF são cadeias lotadas de presos sem condenação

Por Marcio Ortiz Meinberg e Renan Thiago Alencar Moreira

André do Rap estava preso sem condenação transitada em julgado há mais de 90 dias, sem que o juiz responsável tenha renovado a fundamentação da prisão preventiva.

Em 15/10/20 o Supremo Tribunal Federal – STF (por 9 votos a 1) ratificou a decisão de manter a ordem de prisão do traficante André do Rap1.

O caso ganhou as manchetes dos jornais (e portais) quando o decano da corte, ministro Marco Aurélio Mello, concedeu liminar autorizando a soltura do traficante2 com fundamento no artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal:

Art. 316. ……….

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Pois é, André do Rap estava preso sem condenação transitada em julgado há mais de 90 dias, sem que o juiz responsável tenha renovado a fundamentação da prisão preventiva.

Nesse caso, mais vale dizer que errou o juiz a quo, ao não reavaliar no prazo legal a contemporaneidade dos requisitos da segregação cautelar. No mesmo sentido, omitiu-se também o fiscal da lei, nobre representante do Ministério Público, ao não requerer a manutenção da prisão preventiva.

A partir da literalidade do CPP, art. 316, Parágrafo único, o ministro Marco Aurélio concluiu que a prisão era ilegal e, curiosamente, concedeu habeas corpus, um remédio constitucional que se concede “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, LXVIII). No mesmo espírito, toda “prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (CF, art. 5º, LXV).

Esse Marco Aurélio tem cada uma! Onde já se viu conceder habeas corpus para uma prisão ilegal?

Algum incauto poderá dizer que são muitos processos para que os juízes possam revisar a cada noventa dias todas as prisões que decretam, portanto, seriam prazos incontroláveis.

O ano é 1969, Pelé fazia o milésimo gol, o homem pisava na Lua amparado por equipamentos de tecnologia inferior à dos microcomputadores atuais. Sendo assim, é presumível que nos dias atuais os juízes auxiliados pela tecnologia, possam controlar esses e outros prazos legais.

Mas a sociedade brasileira foi salva pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux, que no dia seguinte caçou a decisão do ministro Marco Aurélio, mas não há tempo do traficante desaparecer.

Apesar da polêmica sobre o inexistente poder do presidente do STF revogar liminares dos outros ministros (inaceitável, já que não há hierarquia entre eles e nem qualquer previsão constitucional, legal ou regimental neste sentido), os demais integrantes do Supremo confirmaram o entendimento do ministro Fux de que a situação descrita no CPP, art. 316, Parágrafo único, não significa revogação imediata da prisão ilegal.

A conclusão do STF é que, se depois de 90 dias o juiz do caso deixar de fundamentar a manutenção da prisão preventiva (o que deveria ser feito de ofício, sem necessidade de provocação das partes ou do ministério público), o juiz deve apenas ser “instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos”.

Em suma, o CPP, art. 316, Parágrafo único, estabelece que a prisão preventiva sem fundamento é ilegal, mas o STF concluiu que, em vez de ser solto o réu, o juiz esquecido deve apenas ser “avisado”. E se o juiz competente permanecer sem reavaliar os fundamentos da preventiva, então o CPP, art. 316, Parágrafo único, tornar-se-á letra morta?

No mesmo sentido, o STF não declarou inconstitucional da parte final do dispositivo legal em comento. Pelo contrário, deu interpretação totalmente diversa ao novel preceito. Desse modo, o Supremo de maneira equivocada, usurpou a função típica do legislativo.

A liminar de Marco Aurélio foi muito criticada por ter se apegado à “literalidade” da lei em vez de avaliar as consequências de tal decisão. Oras, quem não avaliou as consequências de tal decisão foi o resto dos ministros!

O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo3: são mais de 700 mil pessoas.

Não obstante o Princípio da Presunção da Inocência, cerca de 1/3 dos presos no Brasil não foram condenados (33,47%, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional – Depen, do Ministério da Justiça e Segurança Pública)4. Estão todos em presos provisoriamente (em prisão temporária ou prisão cautelar, sem confirmação de culpa).

Vivemos num ambiente de verdadeira banalização dos direitos fundamentais, como a presunção de inocência, das liberdades individuais e por consequência do (ab)uso da prisão preventiva.

Há um déficit de 287 mil vagas nas prisões brasileiras (sem considerar regime aberto ou carceragens das delegacias)5. Ou seja, grande parte dos presos está em condições inadequadas.

Os números falam por si: o Brasil prende muito e o Brasil prende mal!

O encarceramento em massa da população não reduziu a violência e a criminalidade. Em suma, essa política não está em benefício da população (se o argumento humanitário é insuficiente, talvez o argumento utilitarista convença…).

Além de não resolver a criminalidade, o sistema prisional brasileiro tem predileção por negros, pobres e jovens (64% dos presos são negros6, 55% são jovens7 e 75% possuem apenas o ensino fundamental completo8).

Apesar deste cenário miserável, nossos ministros entendem que, além de não haver necessidade de soltar os presos sem condenação, o Judiciário sequer precisa justificar a prisão preventiva (basta “avisar” ao juiz esquecido para que faça seu trabalho).

Essa é a consequência direta da decisão SL 13959: o traficante André do Rap continua foragido, mas milhares de negros, pobres e jovens, que não foram condenados em última instância, devem permanecer provisoriamente nas cadeias sem necessidade de fundamentação.

Se isso for uma demonstração de consequencialismo jurídico, podemos concluir que o STF pouco se diferencia do Presidente da República no que se refere ao Direito Penal (ainda que o presidente seja mais sincero sobre suas opiniões).


1 Clique aqui

3 BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. Edição do Kindle. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 14.

6 BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. Edição do Kindle. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 15.

7 BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. Edição do Kindle. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 15.

9 Clique aqui

Artigo publicado originalmente no Migalhas.

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2 Comments

  • MARCIO JUNIO SILVA
    05/11/2020, 10:09

    É óbvio que os advogados criminalistas querem aplicar a literalidade da lei quando lhes é favorável, mas quando o STF faz interpretação teleológica em demais textos legais daí tudo bem? A exemplo o art. 226 da Constituição Federal “homem e mulher” e a interpretação do Supremo estende a união homoafetiva. Como então não estar usurpando em diversas situações a competência do legislativo. QUANTA HIPOCRESIA!!!

    Responder
    • MARCIO ORTIZ MEINBERG@MARCIO JUNIO SILVA
      17/11/2020, 11:12

      Prezado MARCIO JUNIO SILVA,

      A interpretação da Constituição e da Lei não pode ser realizada ao bel prazer do aplicador. Existem conceitos e regras de hermenêutica que dão coerência a este trabalho interpretativo.

      De maneira bastante simplificada, três considerações são necessárias:

      1. A interpretação sempre parte do texto da norma. Ainda que as palavras permitam mais de um sentido, elas também estabelecem os limites. O intérprete não pode simplesmente ignorar o texto da norma.

      2. Em matéria de Direito Penal existe um postulado hermenêutico que determina que sempre deve haver interpretação restritiva quando se trata de limitar algum direito. Trata-se exatamente do caso do André do Rap (além disso, o texto da norma não permitira qualquer outra interpretação diferente dessa).

      3. A decisão sobre a união homoafetiva envolveu as chamadas normas-princípio, que por sua estrutura lógica comportam interpretações mais amplas (sempre dentro dos limites do texto). Além disso, não havia qualquer lesão à direito de terceiros. Por fim, a única referência à “homem e mulher” está no parágrafo terceiro do artigo 226 (o restante do dispositivo é muito mais amplo do que isso), de modo que não existe qualquer literalidade que impeça a interpretação dada pelo STF. Existem alguns milhares de artigos falando sobre o tema, apresentando os critérios, postulados, técnicas etc.

      Responder

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