Por Rafael Valim
A história do Direito Público sempre experimentou avanços e retrocessos em matéria de proteção de direitos. A dialética entre autoridade e liberdade marca a gênese e o desenvolvimento desse ramo do Direito, ora com o predomínio de uma visão obsequiosa ao poder, ora com a prevalência de uma visão defensiva dos indivíduos.
Hoje, o Brasil vive um momento de regressão democrática e, ao mesmo tempo, de culto à autoridade em detrimento dos direitos e garantias individuais. Só espíritos irremediavelmente obtusos ou bajuladores seriam capazes de negar essa evidente realidade.
É enganoso imaginar, entretanto, que tal fenômeno se circunscreva ao âmbito federal. Diversos Estados e Municípios, independentemente da coloração partidária dos seus respectivos mandatários, também têm revelado um sistemático desprezo à ordem constitucional, embora, por vezes, de maneira sub-reptícia ou em áreas impenetráveis ao debate público por conta de sua complexidade técnica.
A transparência administrativa é, sem dúvida alguma, um dos princípios constitucionais da Administração Pública mais castigados no Brasil durante os últimos anos. Após um extraordinário progresso decorrente da implementação da Lei de Acesso à Informação Pública (Lei n. 12.527/2011), na atualidade proliferam exemplos gravíssimos de desrespeito a esse princípio indispensável à vida democrática. Ao ler os jornais, tem-se a impressão de que o sigilo se tornou a regra e a publicidade passou a ser a exceção.
É intuitiva a ideia, tão bem expressada por Norberto Bobbio, de que o governo democrático é o “governo do público em público”, ou seja, a concepção de que as funções estatais devem ser exercidas, em regra, à vista de todos, enquanto às pessoas deve ser assegurada a inviolabilidade da vida privada. Nos quadrantes de um Estado autoritário há uma completa inversão dessa lógica. O Estado se oculta, assenhoreia-se da vida dos súditos, devassa-lhes a intimidade e os converte, de acordo com a execrável expressão nazista, em “homens de vidro”.
Lamentavelmente, as concessões de serviços públicos e de obras públicas se transformaram em um ambiente propício para o amesquinhamento da transparência administrativa. Pedidos de acesso à informação relacionados às receitas da concessionária, à fiscalização dos serviços e das obras, às sanções aplicadas em desfavor da concessionária, entre outros tópicos de igual relevo, são negados sem qualquer cerimônia, sob fundamentos que fazem corar qualquer leigo em Direito. Não é incomum o Poder Concedente negar as informações sob a alegação de que são “informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem” da concessionária.
É difícil explicar o óbvio, mas vamos tentar. As concessões públicas são ajustes firmados entre o Estado e particulares com o propósito de transferir a execução de obras ou serviços públicos. O particular faz as vezes do Estado e responde perante terceiros como se o Estado fosse, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal: “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Resulta, pois, que o trespasse de um serviço público ou de uma obra pública a particulares não pode significar, de maneira alguma, debilitação de direitos ou princípios constitucionais. A empresa, na qualidade de concessionária, submete-se aos mesmos deveres impostos à Administração Pública, entre os quais o dever de transparência.
Não só aos usuários, senão que a toda e qualquer pessoa assiste o direito de conhecer todas as informações relativas às concessões públicas – desde os estudos que fundamentaram a licitação, passando por toda a execução contratual até culminar no encerramento do projeto –, quer sejam as informações atinentes à adequada prestação do serviço, quer sejam as informações econômicas do contrato, visto que a concessionária não é livre para lucrar como desejar. A equação econômico-financeira dos contratos administrativos interessa a toda a coletividade e por todos pode ser fiscalizada.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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