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Tribunais legislam? Fazem “estoque” de “normas pro futuro”?

Tribunais legislam? Fazem “estoque” de “normas pro futuro”?

Abstract: Está correto dizer que Tribunais Superiores devem construir “precedentes” para servir de estoque de normas para casos ainda não existentes?

Ao trabalho. Tentarei responder.

1. A manchete do ConJura preocupação com a PEC da Relevância

“Advogados e professores se mostram preocupados com PEC da Relevância”. Alvíssaras. Advogados devem mesmo se preocupar com o cenário que se avizinha, de paradoxais promessas de melhora do acesso à Justiça impedindo o acesso à Justiça.

Isso vale para a doutrina e até mesmo para a boa dogmática. Assim, fico feliz quando vejo que a “Emenda 125” preocupa os responsáveis pela formação de novos advogados, juízes, procuradores, defensores. É mesmo de se preocupar.

E é justamente por esse papel de constrangimento epistemológico — a doutrina tem um dever fundamental de doutrinar — que aceito um “convite presumido” (brincando com a tal “relevância presumida”) a mais um interessante debate teórico. Sob o pálio do “princípio da caridade”, na esteira dos grandes Blackburn e Davidson.

2. O que é causa relevante?, pergunta a reportagem.

Leiamos uma parte.

“Para Daniel Mitidiero, professor da UFRGS e advogado, a causa relevante será aquela a partir da qual o STJ poderá cumprir a sua função de dar unidade ao Direito tanto retrospectiva quanto prospectivamente. Isso acontecerá quando for possível resolver uma dúvida interpretativa sobre o direito vigente ou enriquecer o estoque de normas para fazer frente a situações ainda não pensadas pelo legislador. Segundo ele, os filtros impostos até agora deixam a desejar. Melhor seria se a definição constitucional fosse mais vaga, permitindo que o STJ construísse o significado da relevância a partir dos seus casos. ‘Talvez seja interessante pensar na importância do bem jurídico tutelado, subjacente ao debate’.”

O advogado e professor Daniel Mitidiero é sempre garantia de uma boa discussão. Já travei com ele bons debates, sobretudo quanto à questão dos “precedentes” (basta ler o meu Precedentes Judiciais e Hermenêutica — editora Juspodium), e sempre o vi como um interlocutor elegante e digno da mais profunda consideração. Digno também de ser levado sempre a sério, dada sua importância no debate jurídico — e sua disposição para ajudar a formar esse debate.

Para ele, causa relevante será, grifos meus, “aquela a partir da qual o STJ poderá cumprir a sua função de dar unidade ao Direito tanto retrospectiva quanto prospectivamente. Mais: para “enriquecer o estoque de normas para fazer frente a situações ainda não pensadas pelo legislador“. E ele complementa:

“Melhor seria se a definição constitucional fosse mais vaga, permitindo que o STJ construísse o significado da relevância“?

Há bastante coisa bem preocupante aqui. Se o professor Mitidiero permitir, e sei que o fará, gostaria de trazer algumas fortes objeções.

3. Minhas fundamentadas objeções

A primeira objeção: não é papel do STJ (e nem de qualquer tribunal superior) resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Esse é, aliás, um dos erros mais fundamentais da “tese dos precedentes” à brasileira. Precedentes são decisões pretéritas — até pelo nome — , de casos concretos, cujas rationes são identificadas como norma pelos tribunais subsequentes.

Insisto em dizer: vinculante, num país de civil law, é a lei à qual o precedente se refere. Uma tese geral e abstrata para o futuro não é um precedente. Isso seria até uma contradição semântica.

Sigo.

Com a segunda objeção: Mitidiero advoga um “estoque” de normas para responder a perguntas que ainda não existem. Como isso seria possível? Trata-se de contradição hermenêutica: simplesmente não há respostas antes das perguntas. Pergunto: “causa relevante”, assim, funcionaria como pretexto para a construção de enunciados aplicáveis ex ante? Isso é tarefa do legislador — esse sim é que deve legislar para a frente.

E isso leva à terceira objeção: Mitidiero diz que “melhor seria se a definição constitucional fosse mais vaga, permitindo que o STJ construísse o significado da relevância”.

Ora, parece claro que aqui temos o velho realismo jurídico (ou a velha aposta no privilégio cognitivo dos juízes e dos tribunais), pela qual direito é o que o tribunal diz que é.

Numa só frase, sem querer, o professor Mitidiero revela o problema da tese realista (o velho positivismo fático). Sem critérios, o tribunal poderá dizer qualquer coisa (como vem fazendo). Inclusive, sobre o alcance de um precedente. E sobre o significado de “causa relevante”. Podendo depois, é claro, mudar de ideia. Porque não há critérios. Os “critérios” são ad hoc e relegados ao próprio tribunal. É óbvio que isso não pode funcionar. Pergunto outra vez: “causa relevante” é o que o tribunal disser que é? Como assim? Para que serve o legislador? Para que serve a doutrina? No fundo, quando a doutrina diz que é o judiciário quem deve definir um conceito, está abrindo mão de sua função. E confessando ser caudatária de decisões tribunalícias.

4. O que significa “precedente”?

E isso me leva ao grande ponto: o professor Mitidiero, com sua argúcia, seria um importante aliado na tarefa que, esta sim, me parece ser a mais adequada e própria à doutrina, à dogmática, à teoria do direito e ao ensino jurídico: a construção desses critérios a partir dos quais podemos existencializar o que efetivamente é jurídico. Como um tribunal deve decidir. O que significa um precedente, como se identifica uma ratio, qual é sua força e seu alcance. O que significa “causa relevante”. “Tese” tem ratio? Tem holding?

Conferir ao tribunal uma função que não é sua já deu errado antes. Aliás, vem dando errado. Aquilo que o STJ chama de precedente não vem funcionando. Se funcionasse, não necessitaríamos de uma nova reforma para construir mais jurisprudência defensiva e filtro para evitar subida de recursos. Insisto: Tribunal não faz precedente para o futuro. Tribunal não faz precedente a partir de “ato de vontade”. Não é permitido ao Tribunal assumir a tese “autorictas nos veritas facit precedente“, como que a imitar o positivismo de Hobbes (autorictas nos veristas facit legis). Sendo mais simples: Tribunal não “põe” o direito.

Respondi ao ministro Sebastião Reis, outro valioso interlocutor sobre esses pontos, em texto no ConJur. Não cometamos, de novo, o mesmo erro. Por que será que os “precedentes” do Tribunal não são obedecidos? Escrevi nesse artigo de resposta ao ministro Sebastião que talvez a resposta esteja no seguinte ponto: talvez os tais precedentes, por serem teses construídas para o futuro, não sejam, efetivamente, precedentes. E isso é um problema sério.

5. O “sistema” que não deu certo

Depois de três décadas, já é possível dizer as razões pelas quais o “sistema de precedentes” não deu certo. E por quê? Porque Tribunais com a pretensão de resolver problemas em abstrato, que ainda não aconteceram, foi justamente o que ajudou a causar esse caos, que transforma o processo de reformas em um moto contínuo. O reformismo pela metade é a única constante, única certeza do direito brasileiro. Vamos insistir no erro? Se me permitem a brincadeira, há aí um venire contra erroris epistemicus proprium.

Permito-me dizer ao caríssimo professor Mitidiero uma vez mais vez: o papel do STJ não é o de construir os próprios critérios. Essa é a função da doutrina, que não pode se restringir ao papel de repetir o que os Tribunais disseram. A doutrina deve fazer constrangimentos epistemológicos. Brincando um pouco, a doutrina deve aporrinhar.

A doutrina não pode concordar com o fato de os Tribunais construírem respostas antes das perguntas; pior, com a agravante de que essas respostas são dadas a partir de critérios formulados pelos próprios Tribunais. Por isso talvez não haja segurança nem mesmo acerca dos repositórios de jurisprudência.

Afinal, quem é o legislador? Mitidiero diz que tribunais devem fazer normas para enriquecer o estoque de normas para fazer frente a situações ainda não pensadas pelo legislador? Mas, se nem o legislador pensou, por qual razão o Tribunal pensaria melhor?

Ao final, um viva à teoria do direito. Que deve criticar. Sei que é antipático criticar quem julga. Num país patrimonialista, criticar autoridades é tarefa árdua. Mais ainda, criticar quem tem o poder de fazer precedentes.

Mas a doutrina precisa enfrentar de frente esses problemas.

Por isso, debates como este, desta coluna hebdomadária, fazem parte de sua função social — razão pela qual saúdo o professor Mitidiero e sua preocupação, porém, contestando sua proposta. Com o respeito que ele merece, por ser alguém que sei ser capaz de levar o direito a sério. No Brasil não é fácil isso.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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