1. Batendo na mesma tecla em tempos em que não há mais teclas
Apresento dois assuntos nesta coluna:
(i) o Tribunal Superior do Trabalho, que mais uma vez decide contra a lei, substituindo-se ao legislador, ratificando a jurisprudencialização do direito;
(ii) o caso Edmilson, condenado equivocadamente a 170 anos de prisão e o TJ-SP explicando que isso se deve ao livre convencimento dos juízes.
Difícil fazer isso todas as semanas aqui na ConJur. Quem se importa com isso? Em tempos de ChatGPT e redes sociais, a coisa se agrava. É que a dogmática jurídica se especializa cada vez mais em fabricar próteses para fantasmas: lida com ficções. A dogmática rasa produz conteúdo prêt-à-porter e lida com “certezas sensíveis”, agora vitaminadas pela (des)IA. Já a teoria do direito sofisticada (que poderia produzir uma dogmática mais responsável) prefere discutir se determinado autor (principalmente se for estrangeiro) é ou não um neokantiano e coisas assim, aprofundando a síndrome de caramuru. Mas, ninguém se preocupa com o livre convencimento (que faz vítimas todos os dias – veja o caso de Edmilson – que conto mais adiante –, condenado a 170 anos de prisão). Igualmente ninguém se preocupa com um sistema de “precedentes” aplicado sem nenhuma epistemologia. Discutir o “neokantismo” (uso o exemplo aqui como uma alegoria) é importante, obviamente. Mas, sem enfrentar a sangria do cotidiano (a realjuridik), perde sua função social.
Não, esta coluna não é uma crítica ao TST ou ao TJ-SP. É, sim, uma crítica de segundo nível a um criterialismo que tomou conta da dogmática jurídica, substituindo o próprio direito.
2. Por qual razão o depoimento da parte contrária pode ser negado pelo juiz?
A SDI-1 do TST decidiu que o juiz pode indeferir o depoimento de qualquer das partes em processo trabalhista. Isto é, o indeferimento da oitiva da parte contrária não configura cerceamento de defesa (E-RRAg-1711-15.2017.5.06.0014). O juiz pode simplesmente indeferir o depoimento. Mesmo sem fundamento. Isso faz parte do seu poder discricionário. Conforme jurisprudência, se o juiz já tem convencimento, não é necessário ouvir as partes. Resta saber como se sabe que ele já tem convicção e de que modo ele pode dar esse salto cognitivo. A questão é: como a dogmática jurídica (doutrina) convive com isso? Não se estuda isso nas pós-graduações? Não há teses de doutorado tratando desses temas? Qual é o papel da doutrina, afinal?
Sigo. A decisão pacificadora do TST vai contra a Constituição e o CPC, que diz, em precisa linha constitucional, no artigo 385, que Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício.
Daí a pergunta que a doutrina deveria formular: de onde o TST concluiu que esse dispositivo é inaplicável ao direito do trabalho? O direito de inquirir a parte contrária seria um direito menor? Ou um direito imune à jurisdição constitucional? O juiz pode ter tanto poder?
Outra pergunta: é o TST que escolhe quais os dispositivos do CPC são aplicáveis ao direito do trabalho? Já não basta ignorar os artigos 489, 371 e 926 do CPC? Essa é uma questão interessante, em um país em que os tribunais superiores fazem precedentes pro futuro. Paradoxalmente, parte da doutrina invoca o common law e o stare decisis para justificar o “sistema de precedentes”, sem se atentar para (ou ignorando) o fato de que nos países de common law, precedentes não são feitos pro futuro e tampouco são teses gerais e abstratas.
3. O TST (ou qualquer tribunal) pode legislar?
A decisão da SDI-1 do TST é ilegal e inconstitucional, uma vez que, por ela, o Judiciário legisla. Dia desses um ministro do STJ disse, em um julgamento que tratava do crime de contrabando e a aplicação de um indulto, que, “conversando com a assessoria e lendo sobre isso, cheguei à conclusão de que, se fizéssemos alguma distinção entre elas, estaríamos legislando. E a lei não fala isso. O decreto até pode fazer alguma coisa, falar em facção, mas não há uma distinção na lei”.
Correto o ministro. Judiciário não legisla. Isso se aplica também ao Tribunal Superior do Trabalho. O imenso poder que possui não pode ir ao ponto de dispensar a aplicação de um dispositivo do CPC, que espelha a Constituição no que pertine ao devido processo legal. Além disso, o julgado afronta o dever de fundamentação constitucional.
Temos de refletir sobre a dignidade da legislação, conforme sempre alerta Otavio Luiz Rodrigues Jr. Tribunais não podem deixar de aplicar leis sem fazer jurisdição constitucional. Não existe a alternativa “não concordo com o legislador”.
4. A responsabilidade da comunidade jurídica e dos professores
Interessante é que, nas redes sociais, alguns advogados consideram acertado o julgamento do TST, porque, afinal, juízes têm livre convencimento. Outro advogado simplesmente disse que a decisão era bem-vinda, porque finalmente pacificava a discussão. Quer dizer: a legitimidade e a compatibilidade com a CF não são importantes. O que importa é a tese cética de que, uma vez sendo o direto indeterminado (sic), alguém tem de dizer como ele deve ser determinado… Mesmo que haja determinação em contrário, no caso “apenas” a Constituição e o CPC.
A comunidade jurídica possui carga razoável de culpa do poder incontrolável dos tribunais. A doutrina pouco constrange (epistemicamente) os tribunais. Restringe-se a “descrever” – empiricamente – as decisões. Para além disso, a maioria dos processualistas ainda sufraga o poder de livre convencimento e da livre apreciação. Aliás, há poucos dias descobri que o livre convencimento e o poder discricionário já se aplicam às bancas de concursos para professores. De direito. Sim, a banca possui livre convencimento para atribuir notas.
E onde ficam as garantias constitucionais, que são juízos prévios e que funcionam como travas a qualquer subjetivismo (leia-se discricionarismo e convencimentos livres)? Isso nada vale?
5. E o caso do Edmilson, condenado a 170 anos ilegal e inconstitucionalmente e em que o TJ-SP justificou os erros pelo livre convencimento? E os sósias de Brad Pitt não cometem estupros?
O título deste item 5 da coluna é medieval. Ele mesmo contém a substância da matéria. Saiu na imprensa. As brilhantes advogadas Dora Cavalcanti e Flávia Rahal, minhas parceiras de Grupo Prerrogativas, fazem um trabalho sem igual vasculhando erros judiciários. O caso Edmilson foi de cabo de esquadra. 170 anos de condenação. Em um dos casos o promotor chegou a dizer que sósias de Brad Pitt não cometiam estupros – para justificar o reconhecimento por fotografia do Edmilson. Mas que fundamentação, não?
Há dias, o STJ decidiu pelo fim de todos os processos. Os 170 anos – dos quais Edmilson cumpriu 12 (pasmem!) – se esfumaçaram. A prova bem provada – que o Estado não fez [1] – mostrou a inocência. E, de novo, para registro: o TJ-SP sacou da manga do colete o velho argumento do livre convencimento. Que é uma pedra filosofal. Serve para qualquer coisa. Até para justificar notas em bancas de concurso, como falei acima.
Em suma: precisamos, mesmo, falar sobre a dogmática jurídica que estamos ensinando nas faculdades e na pós-graduação. Alguma coisa está errada.
Não pode ser tão simples aplicar conceitos mitológicos e ficções como livre convicção e livre convencimento. Não é possível que a maioria dos manuais de direito continuem a trabalhar com essas ficções. Por isso o item 1 desta coluna.
[1] Para registro, nos anos 1990 e 2000, como procurador de Justiça junto à 5ª Câmara Criminal do TJ-RS, nenhuma condenação criminal de primeiro grau era confirmada se o reconhecimento era feito por foto e não obedecia a literalidade do artigo 226 do CPP, ao menos nos processos em que atuei. Do mesmo modo, laudos periciais sem dois peritos não qualificavam furto. Há tantos anos.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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