Bolsonaro extrapola o poder de indultar e se aproxima da prevaricação
É válido o decreto de indulto individual editado pelo presidente Jair Bolsonaro? Não, por alguns motivos.
Antes de mais nada, é verdade que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não cabe ao Judiciário se imiscuir nas razões de política criminal sopesadas pelo presidente da República para editar o indulto coletivo. No entanto, essa decisão do STF tem pouca ou nenhuma aplicação ao indulto individual. Isso porque, diferentemente do indulto coletivo, o individual dificilmente decorre de uma política criminal que o Executivo espera ver implantada no país, como a de desopilar o sistema prisional soltando condenados por casos menos graves —hipótese que sempre inspirou os decretos de indulto no Brasil até o governo Bolsonaro, que praticamente acabou com a tradição de editá-lo na época do Natal.
O indulto individual, por ser personalíssimo, precisa conter um motivo muito relevante, que justifique a sua adoção, sob pena de se transformar em favores do rei a amigos, familiares ou aliados.
Peguemos o caso hipotético de um herói nacional, um esportista adorado pela população, que acaba condenado por um crime não infamante —um crime de trânsito, por exemplo, cuja pena terá de cumprir já em estado avançado de um câncer terminal. Parece haver um interesse coletivo e um clamor nacional pelo indulto.
Diferente do que fez Bolsonaro. O presidente indultou um aliado político que, assim como ele, tem disparado ameaças e incitado a violência contra os Poderes constituídos. E, pior, o fez numa tentativa de substituir o julgamento do STF pelo dele.
Ocorre que não cabe ao presidente da República dizer se uma conduta é ou não criminosa. Quem define o que é crime em abstrato é o Congresso Nacional por meio de lei. E quem define o que é crime no caso concreto é o Judiciário por meio de uma decisão judicial. Nenhum decreto de indulto pode pretender redefinir uma conduta considerada criminosa pelo Judiciário. Somente o Congresso poderia desconstituir a tipicidade penal de um fato pretérito, por meio da chamada “abolitio criminis” ou da anistia. O indulto não se presta a isso. O presidente deu uma anistia individual a fatos praticados pelo amigo e a alcunhou de indulto.
Por outro lado, quando a Constituição Federal garante a imunidade parlamentar por palavras e votos, não está isentando de pena qualquer palavra proferida pelo deputado ou senador. Um pedido de propina é feito com palavras e é crime. Uma ordem para a prática de um crime, um homicídio, por exemplo, é feita com palavras e é crime. O parlamentar está protegido penalmente por opiniões, mas não por palavras que transbordam o terreno da mera opinião e desembocam no pântano perigoso de crimes mais graves.
Por fim, a Lei de Segurança Nacional, editada no final da ditadura militar, não era totalmente antagônica à liberdade de expressão. Tanto que muitos dos crimes nela previstos foram realocados na recém-aprovada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, delitos nos quais o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) foi dado como incurso.
Alguns crimes nela previstos eram inconstitucionais de fato e, felizmente, abolidos com a nova lei, como o de imputar crime ao presidente da República (calúnia). Pasmem, porém, pois foi justamente por este crime que o agora benevolente presidente da República requisitou dezenas de investigações criminais contra opositores.
Ou seja, com uma mão Bolsonaro usa a Lei de Segurança Nacional para perseguir opositores, enquanto com a outra anistia amigos a quem garante uma liberdade de expressão ilimitada.
É patente a afronta ao princípio da isonomia. É evidente que o presidente age por capricho pessoal e não por interesse público. Extrapola em muito o poder de indultar e se aproxima da prevaricação.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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