Em outubro, brasileiros irão às urnas escolher presidente, governadores, senadores e deputados. Milhares de presos provisórios e adolescentes internados maiores de 16 anos não votarão, devido à indiferença (ou má vontade) do Estado. A restrição é das mais cruéis barbáries contra o processo democrático.
A Constituição estabelece o voto direto, secreto e com idêntico valor para todos. Ele é obrigatório; facultativo aos maiores de 16 anos e menores de 18, analfabetos ou maiores de 70 anos.
O artigo 15, III, da Constituição, fixa que, enquanto durar a condenação criminal transitada em julgado, o apenado tem seus diretos políticos suspensos; cumprida ou extinta a pena, eles cessam (Súmula 9/1992 do TSE).
O preso provisório tem direito a votar, candidatar-se a cargo eletivo e ser votado. O Tribunal Superior Eleitoral decidiu, em 2004, que “a possibilidade de presos provisórios virem a votar depende da instalação de seções especiais, bem como de os interessados terem efetuado pedido de transferência eleitoral” (Resolução 21.804); norma programática, contudo.
Na prática, a Justiça encontra dificuldades operacionais a viabilizar o direito ao voto dos presos provisórios, especialmente devido às suas condições transitórias de custódia. Impossível antever suas condições no dia da eleição. Ademais, o calendário eleitoral só admite que o eleitor atualize seus cadastros, tornando-se apto para votar, até maio do ano do pleito.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão do Ministério da Justiça aprovou, em 2005, parecer do conselheiro Carlos Lélio Lauria Ferreira recomendando que “o voto do preso provisório poderia ser viabilizado com mudança da legislação eleitoral, com a flexibilização do domicílio eleitoral”. Oficiou-se ao TSE e aos Tribunais Regionais Eleitorais para que seções eleitorais fossem instaladas dentro dos presídios já para eleições de 2006 [1]. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) emitiu nota técnica no mesmo sentido [2]. O TSE realizou audiência pública para tratar sobre a matéria; por designação do presidente Mariz de Oliveira, participei como conselheiro representante do CNPCP,
No pleito de 2008, o TRE-RJ (Resolução 690) instalou seção, experimentalmente, na 52ª Delegacia de Polícia, em Nova Iguaçu. O juiz Wanderley de Carvalho Rego presidiu o projeto piloto [3]; dele participei, como conselheiro representante do CNPCP, dos atos preparatórios e da eleição. Tirando as observações de Carvalho Rego [4], ela transcorreu sem percalço.
Antes, promoveu-se mutirão para regularização dos títulos eleitorais [5]. Cento e dois presos pediram a transferência para sessão. Quarenta e oito foram transferidos e não votaram, por falta de infraestrutura estatal que lhes garantisse a remoção no dia da eleição [6]. Outros que não tinham transferido seus títulos justificaram suas ausências [7]. Todos os cadastrados e custodiados votaram[8]. Presente durante a votação, Carvalho Rego registrou no final: “a relevante satisfação dos custodiados e a receptividade dos agentes policiais” [9].
Apurou-se 54 votos para vereador. Sendo 42 nominais (77,78%), sete para legendas (13%), quatro em branco (7,4%) e um nulo (1,86%). Os 15 partidos que concorreram foram votados. Treze por cento dos votos (7) foram para legendas de seis partidos. Vinte candidatos a vereador receberam votação. Doze de nove partidos diferentes receberam um voto cada; três de três partidos diferentes receberam dois votos cada; um recebeu três votos; dois de dois partidos diferentes receberam quatro votos; um recebeu seis votos e outro sete, num total de 42 votos nominais [10]. Quatro presos libertados retornaram para exercer o sufrágio no local [11]. Lindbergh Farias foi reeleito prefeito em primeiro turno com 61,11% dos votos dos presos e 65,33% dos munícipes. Estaticamente, houve paridade eleitoral [12].
Em 2010, o TSE promoveu outra audiência pública para rediscutir novas diretrizes que aperfeiçoassem o voto dos presos provisórios. A corte editou a Resolução 23.219, determinando aos TREs a criação de seções eleitorais em penitenciárias e em unidades de internação de adolescentes, para cadastramento no tempo da lei, possibilitando pudessem votar; novel regramento programático.
Presos provisórios e adolescentes internados seguem tendo seus direitos de votar cerceados. Nas eleições de 2018, somente 5% dos 244 mil puderam votar no primeiro turno [13]. Cinco estados não instalaram nenhuma seção em prisões: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Tocantins. Os motivos variaram da falta de segurança e estrutura das cadeias até ausência de interesse dos presos e adolescentes infratores em votar. Em 2020, 99% dos 397 mil dos presos provisórios não votaram [14]; desconhece-se se o mesmo ocorreu com os adolescentes infratores. As únicas capitais com urnas em unidades prisionais foram São Paulo, São Luís, Salvador e Porto Velho. No Rio, nenhum dos 47 mil puderam escolher seus candidatos [15].
Diz-se contra o voto a dificuldade na regularização de títulos e de levar urnas a presídios. Ora, a Justiça também pena para que eleitores soltos atualizem seus cadastros. Não à toa, promove campanhas publicitárias em veículos de imprensa e redes sociais. Quanto ao transporte de urnas, é dever do Estado assegurá-lo, para ver respeitado direito dos mais caros aos cidadãos em um estado democrático de direito; eleger seus representantes nos Poderes Executivo e Legislativo. E, convenha-se: se a Justiça leva urnas até aldeias no coração da Amazônia, obstáculos maiores não encontraria para disponibiliza-las aos encarcerados.
Outro falso pretexto em desfavor do voto é o de que facções criminosas influenciam a escolha de candidatos. É argumento ad terrorem. Primeiro que a suposta coação identicamente se aplica às pessoas livres. Segundo que os resultados eleitorais não confirmam a premissa, como atestado no pleito em Nova Iguaçu [16].
Não basta permitir — e garantir — que presos provisórios votem. Tem de se estender a todos os encarcerados, mesmo os em caráter definitivo. Conforme dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça, a epidemia do Covid-19 pode ter elevado a massa carcerária a 919.651 pessoas. Esse índice consolida o país como o terceiro que mais prende no mundo, só atrás de China e Estados Unidos [17].
Como 99% dos presos provisórios não votaram em 2020, indaga-se: é democrático arrebatá-los do processo eleitoral? Não!
A condenação criminal, por si só, não interrompe os direitos políticos do réu provisório ou definitivo. Ela somente tolhe o direito de ir e vir, exceto em hipóteses em que haja reflexo secundário de temporariamente romper direitos políticos. Dois exemplos demonstram isso. Condenado pelo Supremo Tribunal Federal a 8 anos e 9 meses de reclusão e a suspensão de seus direitos políticos, o deputado Daniel Silveira teve sua pena perdoada pelo presidente Jair Bolsonaro. Para o procurador-geral da República, Augusto Aras, a graça concedida por Bolsonaro alcança simplesmente as consequências da pena corporal, não mexendo na suspensão dos direitos políticos do parlamentar [18]. Já o ex-deputado Celso Jacob foi condenado a 7 anos e 2 meses de reclusão em regime semiaberto pelo STF, mantidos seus direitos políticos. Em decorrência, seguiu exercendo seu mandato [19] por meses, até que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou que a condição de preso por fraude à licitação era incompatível com a atuação parlamentar [20].
E se os presos votarem em candidatos que advoguem seus interesses? Qual será o problema para a República? Nenhum! Esta é uma opção legítima e democrática. O ex-deputado Marco Antonio Cabral apresentou projeto de lei prevendo isenção de Imposto de Renda para guardas penais [21]. Estes ainda têm, no momento, a função de custodiar seu pai, o ex-governador Sérgio Cabral, preso provisoriamente desde 2016. É de interesse dos reclusos — e dos adolescentes internados — votar em políticos que encampem propostas que objetivem, dentre outros, melhorar o sistema prisional brasileiro.
Recorde-se que o Supremo Tribunal Federal acordou, em 2015, ser o sistema penitenciário brasileiro um “estado de coisas inconstitucional” [22]; em decorrência, todos os agentes dos Poderes da República, sob a fiscalização do Ministério Público que detém o dever, constitucional e legal, de atuar contra os que nada fizerem, têm missão de cumprir a decisão, sob pena de serem processados por improbidade administrativa. E lembre-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que, devido às condições degradantes, devem ser contados em dobro os dias de pena cumpridos no Instituto Penal Plácido Sá Carvalho, no Rio de Janeiro, e no Complexo Penitenciário do Curado, em Pernambuco [23].
Abra-se parêntese. O 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública/2020 revela, sem surpresa histórica, que 66,7% dos presos são negros e que, para cada não negro preso, 2 negros foram presos. Ademais, se se comparar a entrada e a permanência de pessoas no sistema prisional, ver-se-á que é pouco mais do que o dobro dos não negros. Há desigualdade racial no sistema percebida por intermédio da maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros. As chances diferenciais a que estão submetidos socialmente e as condições de pobreza por eles enfrentadas os fazem os alvos prediletos das políticas de encarceramento do país. O sistema penitenciário brasileiro é um escandaloso recorte de racismo estrutural, e o fato sugestiona siga ele largado às Parcas pelos poderes públicos [24]. Fecha-se parêntese.
De retorno ao parecer aprovado pelo CNPCP de 2005, foi ele favorável à PEC 65/2003, que atribuía o direito de voto aos condenados definitivamente, os quais somente ficariam limitados a se candidatar a cargos eletivos. Modulando entendimento, hoje penso não ser necessária alteração legislativa. Fábio Rocha de Oliveira [25] propôs — e com ele aquiesço — nova interpretação do artigo 15, III, da Constituição, que diferenciasse os direitos políticos de expressão (entre eles, o de votar) dos de representação (como os de se candidatar a cargo eletivo e ser votado). Portanto, só os últimos estariam restringidos em face de condenação criminal definitiva.
“Assim, preserva-se a alistabilidade do delinquente [sic], com todos os ganhos jurídicos e políticos decorrentes da mesma, especialmente para a reintegração social do condenado [sic] e para a inserção da pauta carcerária nas políticas públicas governamentais. Inúmeros países já romperam o preconceituoso estigma de ser o delinquente [sic] uma pessoa indigna de participar ativamente dos processos eleitorais. É passada a hora de o Brasil também avançar em seu grau de civilidade e finalmente romper, no século 21, com um entendimento arcaico de inalistabilidade do condenado, concepção esta que decorreu de um sistema de privilégios em um sufrágio censitário em meados do século 18”, destaca Oliveira[26].
Enfim, reflita-se: 920 mil brasileiros são desqualificados para votar nos futuros dirigentes sem fundamento válido; submetem-se as decisões daqueles, sendo a causa da exclusão orientada à lógica do inimigo, acolhida no ambiente escravista norte-americano.
A pessoa não é menos cidadã do que outra somente porque foi definitivamente condenada criminalmente. Ela tem um preço a pagar; a pena, nada mais.
Cadeia é o símbolo da incompetência do ser humano em lidar com os atos dos seus semelhantes, profetizava Evandro Lins e Silva. Ela só pode ser utilizada enquanto solução diversa não for idealizada pelo ser humano, e em última hipótese e em situações ímpares. Caso contrário, o que se tem é ilegalidade e a alimentação de barril de pólvora pronto a explodir. Não se necessita adicionar mais explosivos excluindo pessoas do processo eleitoral, a mais bela festa da democracia. Votemos todos, pois.
[1] Parecer no processo 08001.002269/2001-11, aprovado na 315ª Reunião Ordinária do CNPCP, realizada em 26, 27 e 27/10/2005 em São Luís (MA). Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-conselho-nacional-politica.pdf. Acessado em: 5/7/2022.
[2] Nota Técnica com o assunto “O exercício do voto pelo preso provisório. Panorama nacional, aprovada em 30/1/2006. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/relatorio-departamento-penitenciario.pdf. Acessado em: 5/7/2022.
[3] Disponível em: https://www.ajd.org.br/documentos/voto-e-cidadania/514-38relatorio-do-processo-eleitoral-de-2008-no-rio-de-janeiro. Acessado em 9/7/2022.
[4] Idem.
[5] DAMASCENO, João Batista; e ZACCONE, Orlando. O voto do preso no RJ: uma análise do processo eleitoral. Juízes para a democracia, ano 12, nº 46, junho/novembro-2008. Disponível em: https://ajd.org.br/images/wp/uploads/2018/07/63_democracian46.pdf. Acessado em: 4/7/2022.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Falta de segurança impede votação de presos no RJ e em mais quatro estados. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/24/voto-de-presos-provisorios-nas-eleicoes-2018.htm. Acessado em: 4/7/2022.
[14] A eleição atrás das grades. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/eleicao-atras-das-grades/. Acessado em: 4/7/2022.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Pandemia pode ter levado Brasil a ter recorde histórico de 919.651 presos. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/06/pandemia-pode-ter-levado-brasil-a-ter-recorde-historico-de-919651-presos.ghtml. Acessado em: 4/7/2022.
[18] PGR defende graça concedida a Daniel Silveira por Bolsonaro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-25/pgr-defende-graca-concedida-bolsonaro-daniel-silveira. Acessado em: 8/7/2022.
[19] Justiça permite que deputado preso em regime semiaberto siga no mandato. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-27/justica-permite-deputado-preso-semiaberto-mantenha-mandato. Acessado em: 8/7/2022.
[20] Justiça do DF revoga autorização para deputado preso trabalhar na Câmara. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-nov-24/justica-revoga-autorizacao-deputado-preso-trabalhar-camara. Acessado em: 8/7/2022.
[21] Projeto de filho de Cabral beneficia agentes penitenciários. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,projeto-de-filho-de-cabral-beneficia-agentes-penitenciarios,70001928743. Acessado em: 5/7/2022.
[22] STF. ADPF 347, relator o ministro Marco Aurélio.
[23] Corte IDH: Começa a ser elaborado plano para adequação de presídio no RJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-09/corte-idh-comeca-elaborado-plano-adequacao-presidio. Acessado em: 11/7/2022.
[24] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/19/em-15-anos-proporcao-de-negros-nas-prisoes-aumenta-14percent-ja-a-de-brancos-diminui-19percent-mostra-anuario-de-seguranca-publica.ghtml. Acessado em: 10/7/2022.
[25] OLIVEIRA, Fábio Rocha de. Preso cidadão: os direitos políticos do criminalmente condenado. Uma análise da alistabilidade do delinquente. UFMG, 2019, p. 280.
[26] Idem.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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