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A CPI da Covid e a alternativa aos poderes imperiais do PGR

A CPI da Covid e a alternativa aos poderes imperiais do PGR

Por Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay, Marcelo Turbay Freiria e Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

Em abril de 2021, foi instaurada, no Senado, a chamada “CPI da Pandemia”, com a função de “apurar ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para pacientes internados; e as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos” [1], valendo-se de recursos federais, além de outra ações e omissões ocorridas durante a calamidade da pandemia.

Após dezenas de depoimentos prestados, documentos apresentados, inúmeras medidas investigativas decretadas pelo colegiado, o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), tem indicado publicamente uma lista de irregularidades e/ou condutas criminosas apuradas e comprovadas pela comissão.

A contundência dos elementos contra os investigados é tamanha que, mesmo antes do início das investigações, entidades e profissionais de diferentes áreas do meio jurídico apresentaram estudos e considerações sobre a tipicidade de condutas que posteriormente passaram a ser apuradas no bojo da CPI.

No ponto, vale mencionar parecer elaborado pela comissão especial de juristas criada pela Ordem dos Advogados do Brasil, no qual os subscritores indicaram as seguintes condutas típicas praticadas pelo presidente da República ao longo da pandemia de Covid-19: “no plano nacional, a) delitos de homicídio e lesão corporal por omissão imprópria (comissão por omissão); b) crimes de responsabilidade; no plano internacional, crime contra a humanidade (art. 7º do Estatuto de Roma)”.

Essas constatações foram corroboradas pela análise jurídica promovida pelos juristas e professores indicados pela CPI para auxiliar os trabalhos dos senadores. No dia 14 de setembro de 2021, esse grupo apresentou parecer que, analisando as provas produzidas pela investigação, concluiu pela prática de inúmeros crimes comuns e de responsabilidade por parte do presidente da República e de outros agentes públicos e políticos. Ao final, foram capitulados os seguintes crimes:

“Os fartos elementos probatórios estão a demonstrar a existência de “crime de responsabilidade’ (artigo 7º, número 9, da Lei 1.079/50), de crimes contra saúde pública, como os crimes de epidemia (artigo 267 do Código Penal) e de infração de medida sanitária preventiva (artigo 268 do Código Penal), além da figura do charlatanismo (artigo 283 do Código Penal); de crime contra a paz pública, na modalidade de incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal); de crimes contra a Administração Pública, representados pelos crimes de falso (artigos 298 e 304 do Código Penal) e de estelionato (artigo 171, §3º, c/c artigo 14, II, ambos do Código Penal), de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), de advocacia administrativa (artigo 321 do Código Penal) e de prevaricação (artigo 319 do Código Penal). Por fim, não menos importante é a repercussão jurídica na esfera internacional das condutas examinadas pela comissão de especialistas, que configuram crimes contra humanidade (artigo 7º do Estatuto de Roma).”

Diante desse cenário, a comunidade política e jurídica tem debatido possíveis encaminhamentos e desdobramentos das conclusões do relatório final, que fatalmente trará graves imputações criminais ao presidente da República, conforme já comentou o senador Renan Calheiros em manifestações à imprensa.

É que, por previsão constitucional, o relatório final deverá ser encaminhado ao Ministério Público para análise e promoção de medidas cíveis e criminais cabíveis. Considerando que as conclusões da comissão apontarão indícios de irregularidades e de ilícitos penais supostamente praticados pelo chefe do Poder Executivo, caberá ao procurador-geral da República a tomada de decisão sobre o que será feito com esses elementos de convicção angariados pelo Senado.

Tal circunstância, reflexo de disposição constitucional, inaugura um outro campo de análise, justamente o objeto de estudo do presente artigo: a possibilidade de ajuizamento de ação penal privada subsidiária da ação penal pública na hipótese de inércia da Procuradoria-Geral da República.

A ação penal privada subsidiária está prevista constitucionalmente no artigo 5º, LIX, da CF, bem como nos artigos 29 e 30 do Código Penal, além do artigo 100, §3º, do Código de Processo Penal.

Helio Tornaghi explica que tal possibilidade processual é “absolutamente sustentável, pois o Estado, ao imcumbir-se de movê-la, deve acautelar o interesse do ofendido no caso em que o órgão dele, Estado, não a intenta”. E prossegue ponderando que é irrelevante que o membro do Ministério Público não tenha oferecido denúncia “por desídia, má-fé ou outro qualquer motivo. A lei não distingue. O que ela quer fazer, e realmente faz, é permitir ao ofendido ou a seu representante legal que se substitua ao Ministério Público e mova a ação”[2].

Por sua vez, um precedente do STF merece especial atenção, pois contou com o reconhecimento de repercussão geral e estabeleceu parâmetros práticos e jurídicos para o exercício da ação penal privada subsidiária. Trata-se do ARE nº 859.251, relator ministro Gilmar Mendes, oportunidade em que o Plenário fixou que “(i) o ajuizamento da ação penal privada pode ocorrer após o decurso do prazo legal, sem que seja oferecida denúncia, ou promovido o arquivamento, ou requisitadas diligências externas ao Ministério Público. Diligências internas à instituição são irrelevantes; (ii) a conduta do Ministério Público posterior ao surgimento do direito de queixa não prejudica sua propositura. Assim, o oferecimento de denúncia, a promoção do arquivamento ou a requisição de diligências externas ao Ministério Público, posterior ao decurso do prazo legal para a propositura da ação penal, não afastam o direito de queixa. Nem mesmo a ciência da vítima ou da família quanto a tais diligências afasta esse direito, por não representar concordância com a falta de iniciativa da ação penal pública”.

Como se vê, tal modalidade de ação penal tem previsão legal e constitucional, inclusive como cláusula pétrea, bem como respaldo na jurisprudência da Suprema Corte. Contudo, no atual momento, resta analisar, para uma melhor compreensão e aperfeiçoamento do instituto, a possibilidade de extensão do rol de legitimados a intentá-la.

A doutrina traz antigo debate acadêmico sobre a coincidência entre o rol de legitimados para a propositura da ação e a miríade de sujeitos passivos nos mais variados delitos, inclusive naqueles contra a administração pública, o que autorizaria entes públicos a ingressarem, em tese, com a queixa subsidiária.

Antônio José dos Reis Júnior sustenta que, em crimes contra a incolumidade pública ou contra o meio ambiente, exemplificativamente, “a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública poderá ser proposta por todo aquele que puder se identificar, ao lado da coletividade a que pertence, como sendo o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal”[3].

Alessandra Mascarenhas e Juliana Damasceno Santos, no artigo “A legitimidade para propositura da ação penal privada subsidiária da pública em crimes que afetam bens jurídicos coletivos”, defendem que não pode ser apenas o interesse da vítima a mover o aparato penal estatal, mas também o interesse público na apuração criminal, sobretudo em delitos que atingem a coletividade, ponderando que “(…) a garantia processual da ação supletiva deve estar a serviço da desejável proteção penal determinada no âmbito material pelo princípio da exclusiva proteção de bem jurídico. A ação penal privada supletiva pode ser o instrumento prático de realização da tutela penal de bens da comunidade quando há inércia ministerial”[4].

Na visão das autoras, a Assembleia Geral da Nações Unidas, em sua “Declaração de Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso do Poder”, prevista na Resolução 40/34, de 29 de novembro de 1995, traz importante diretriz para a interpretação da política criminal legislativa em matéria internacional, devendo ser considerada como um “topoi de argumentação para justificar a interpretação que favoreça a ampliação do rol de legitimados para propositura da ação supletiva”.

Nesse cenário, vislumbra parte da doutrina a possibilidade jurídica de uma interpretação ampliada de legitimados para o oferecimento de queixa subsidiária, notadamente quando há violação de bens jurídicos supraindividuais, situação que corresponde justamente aos crimes imputados ao Presidente da República e a outros agentes públicos no contexto fático apurado pela “CPI da Pandemia”.

Falta agora perquirir se, uma vez apresentado o relatório final pelo senador Renan em consonância com o parecer dos juristas e aprovado pelo colegiado da CPI, com o subsequente encaminhamento das conclusões ao procurador-geral da República, o chefe do Ministério Público Federal promoverá as devidas medidas incriminatórias, como a denúncia do Presidente da República e dos demais agentes públicos eventualmente apontados.

E, na eventualidade de total inércia do PGR ou, após o fim do prazo legal para oferecimento da denúncia, de promoção de arquivamento ou de pedido de diligências complementares, é possível vislumbrar a legitimidade para ajuizamento da queixa subsidiária por parte de entidades, de partidos políticos com representação no Congresso Nacional, de grupos de pessoas atingidas e ofendidas?

Em nossa visão, a resposta é sim. Contudo, tal possibilidade deveria ter uma previsão mais específica na legislação brasileira, o que poderia ocorrer por meio de alterações aptas a aperfeiçoar o instituto, as hipóteses de cabimento e os sujeitos legitimados.

A tutela de bens jurídicos supraindividuais e a delimitação dos ofendidos têm ganhado espaço entre as preocupações a respeito dos direitos das vítimas, principalmente em razão daqueles casos em que o sujeito passivo do delito é um número, a priori, indeterminado de pessoas ou simplesmente a coletividade. É que, nessas hipóteses, uma concepção tradicional da legitimidade para a ação penal privada supletiva poderia, em tese, inviabilizar a propositura da queixa subsidiária ou até mesmo abarrotar o Poder Judiciário com um número exagerado de demandas praticamente idênticas.

Muito embora a situação não seja análoga, pois a discussão abarcava o status libertatis de diversas custodiadas inseridas em um grupo vulnerável, matéria que evidentemente deve viabilizar uma maior amplitude dos instrumentos jurídicos vocacionados a tutelá-la, algumas reflexões constantes do julgamento do habeas corpus n° 143.641[5] são, em alguma medida, aplicáveis ao exame aqui proposto.

Naquela oportunidade, apontou o ministro Dias Toffoli a ineficácia do sistema processual penal clássico, “em que apenas o titular do direito, por seu representante legal, pode demandar em juízo”, aduzindo que, nos dias atuais, esse modelo “tem deixado a desejar no tocante à efetiva proteção jurisdicional dos direitos subjetivos individuais”.

No mesmo sentido, o ministro Relator, Ricardo Lewandowski, afirmou que “na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, inclusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente desprovidos de mecanismos de defesa céleres e adequados”. Convocou, então, a Corte a assumir “a responsabilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente”.

As lesões a direitos possuem, cada vez mais, o potencial de atingir não apenas um indivíduo, mas toda a coletividade. Especialmente no atual contexto de crise sanitária, viu-se uma promoção de violações em larga escala por parte do governo federal, contribuindo para a morte de mais de 500 mil brasileiros em razão da Covid-19, a perda de apreço pelas instituições democráticas, além da devastação do meio ambiente e das comunidades indígenas.

Nesse cenário, à semelhança do movimento empreendido em 2018 pelo Supremo, é necessário convocar o Poder Legislativo a assumir a responsabilidade e o comprometimento que detém perante o Estado democrático de direito, no sentido de promover mudanças na legislação que favoreçam o acesso à justiça pelos grupos sociais penalmente mais vulneráveis, enfatizando algumas soluções de natureza coletiva, inclusive para eventualmente permitir, com maior facilidade, a propositura de ação penal privada subsidiária.

Tal iniciativa legislativa não seria incomum, nem tão original.

As mudanças trazidas pelo Projeto de Lei n° 2.108/2021, que, dentre outras coisas, propôs a revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983), e pelo Projeto de Lei Complementar n° 112/2021, referente ao novo Código Eleitoral, são nesse sentido.

O Projeto de Lei n° 2.108/2021 inaugurou, em seu artigo 359-Q, a possibilidade dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional ajuizarem ação penal privada subsidiária, no caso de o “Ministério Público não atuar no prazo estabelecido em lei, oferecendo a denúncia ou ordenando o arquivamento do inquérito”. Essa hipótese estaria restrita aos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, mas o raciocínio é o mesmo.

Ocorre que o presidente vetou, dentre outros, os artigos que versavam sobre o crime de fake news e sobre a possibilidade de ação penal privada subsidiária ser intentada por partidos políticos. Coincidência?

O fato é que o Congresso ainda não decidiu sobre os artigos vetados, de sorte que a discussão permanece em aberto e o instituto ainda continua plenamente passível de aprovação, que poderá vir a ocorrer com a derrubada dos vetos.

Por sua vez, o projeto do novo Código Eleitoral propõe avanço ainda maior, permitido, em seu artigo 875, parágrafo único, que, na inércia do Ministério Público, qualquer cidadão apresente ação penal privada subsidiária relativa às infrações penais eleitorais. Recentemente, o texto-base foi aprovado pela Câmara.

Bem se vê, portanto, que já há uma tendência de o Poder Legislativo ampliar, em algumas situações, o rol de legitimados a promover a ação penal privada subsidiária da pública. Acreditamos que essa diretriz deveria ser ecoada no relatório final da “CPI da Pandemia”, principalmente em razão da excepcionalidade dos fatos apurados e da quantidade de crimes que podem, em tese, ser imputados ao Presidente de República, o qual poderia sugerir mudanças legislativas para aperfeiçoar o instituto da ação penal privada subsidiária em hipóteses de violações a bens jurídicos supraindividuais e, assim, possibilitar, com maior clareza, o ajuizamento de queixa por entidades, grupos de cidadãos vitimados/ofendidos e de partidos políticos com representação no Congresso, na hipótese de inércia do Ministério Público, inclusive do procurador-geral da República.


[1] Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441> . Acesso em 15.09.21

[2] TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal de acordo com a CF/88. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991

[3] DOS REIS JÚNIOR, Antônio José. A atuação do Ente Público na Persecução Criminal, à Luz da Constituição Federal. Revista Jurídica da Presidência, v. 7, n. 76, p. 08-41, 2006. 0

[4] PRADO, Alessandra Rapacci Mascarenhas; SANTOS, Juliana Pinheiro Damasceno. A LEGITIMIDADE PARA PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA EM CRIMES QUE AFETAM BENS JURÍDICOS COLETIVOS. O EXEMPLO REPRESENTATIVO DOS CRIMES AMBIENTAIS. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição, v. 3, n. 1, p. 77-96, 2017.

[5] A partir dessa emblemático caso, passou-se a admitir, por analogia ao artigo 12 da Lei 13.300/2016, que enumera os legitimados a impetrar mandado de injunção coletivo, que o Ministério Público, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, organizações sindicais, entidades de classe ou associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, e a Defensoria Pública impetrem habeas corpus coletivo, em face de situação de lesão – ou ameaça de lesão – coletiva à direitos individuais homogêneos.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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