Interessante discussão jurídica. Se não cabe recurso ordinário contra decisão concessiva de habeas corpus, caberia um RESP ou RE? Eis o busílis.
Quando interpretamos temos de conhecer a situação hermenêutica. Há textos e contextos. Habeas Corpus quer dizer remédio heroico. Contra o Estado. Sempre foi assim. E o é.
Partindo desse “contexto de situação”, a resposta deve(ria) ser negativa, isto é, não cabe recurso contra decisão concessiva de HC. O primeiro motivo é que o habeas corpus é um instrumento exclusivo da defesa e o MP, nessa perspectiva, somente atua no interesse do paciente e como custos legis.
A esse respeito, tem uma interessante decisão monocrática (RE no HC 305.141) — uma das raras decisões do STJ que efetivamente enfrenta o cerne da questão — da lavra da min. Laurita Vaz, em que inadmite RE de decisão concessiva de HC impetrado por assistente de acusação. Embora seja de assistente, a temática é a mesma. Vale, aqui, o cerne do problema.
Sim, sabe-se que existe súmula que impede que o assistente recorra de decisão em HC (súmula 208 STF) e se trata de RE e não REsp. E o motivo é a taxatividade do rol que disciplina as atribuições do advogado da vítima.
A fundamentação da ministra é ampla. Vejamos:
“O habeas corpus é remédio de manejo exclusivo da defesa. Não cabe, na referida via, qualquer intervenção do acusador (o Parquet manifesta-se na qualidade de custos legis) ou de assistente do Ministério Público, sob pena de desvirtuamento da finalidade constitucional do writ.”
O segundo ponto é que a CF é taxativa quanto às atribuições do Ministério Público e, igualmente, estabelece a serventia do habeas corpus como instrumento exclusivo para atender a defesa.
Admitir REsp ou RE interposto pelo MP de decisão concessiva de HC pode parecer correto, se pensarmos o HC como um tipo de recurso comum. Porém, o HC é mais do que isso.
Sim, é evidente que não podemos esquecer a decisão recente do min. Luiz Fux no caso da Boate Kiss (SL 1.504). Relembrando, o ministro suspendeu a eficácia de liminar em sede de HC, com fulcro no art. 4.º da Lei 8437/92 e no Regimento Interno. Já há muita coisa escrita sobre isso. Parece-me que a principal objeção à decisão do min. Fux é, (i) para além do desvio hermenêutico da função do habeas corpus, (ii) há o uso inadequado da Lei 8.437, que não se destina a revogar decisões em sede de liberdades. Não há quaisquer indícios pelos quais se possa pensar que a referida lei foi cogitada para ser usada no processo penal.
Além disso, a decisão de Fux é monocrática. Penso que –— ainda que seja de forma reflexa — essa discussão sobre a legitimidade do MP para recorrer de decisão concessiva será objeto de análise quando do julgamento colegiado. A ver.
De frisar que o STJ tem casos que, embora sem discussão de fundo acerca da temática, apontam para a possibilidade de manejo de REsp contra decisão concessiva de HC. Portanto, a matéria não tem consenso.
Interessante é que um tema tão importante tenha sido tratado até de hoje de forma lateral,1 secundária. Ao que encontrei, apenas a ministra Laurita Vaz tratou do tema de forma mais frontal — o voto é citado acima.
Já no âmbito do Supremo Tribunal, tem-se o mesmo entendimento de que o MP teria legitimidade para recorrer extraordinariamente em Habeas Corpus concedido. Mais recentemente, cita-se o RE 1.342.077 e o RE 1.344.374. Em ambos, afirmou-se que “o entendimento deste Tribunal, há muito tempo, é consolidado no sentido da plena e ampla legitimidade do Ministério Público para recorrer extraordinariamente em sede de Habeas Corpus. Essa compreensão decorre, em especial, do julgamento do RE 206.482/SP”. A questão é: o que seria “há muito tempo”?
Buscando o DNA dessa discussão, constata-se ser uma decisão de 1988 e que tratava da equiparação do devedor fiduciante ao depositário infiel. In casu, decidiu-se que a equiparação não afrontaria a CF e que o MP teria legitimidade para recorrer. E ali o STF cita um julgado ainda mais antigo (de 1951), que não tem mais qualquer aplicabilidade nos dias de hoje.
Tenho que existem bons argumentos para contestar a tese de que cabe, lato sensu, RESP e RE de decisão concessiva de HC. Isto porque, se falamos de HC, falamos de liberdades. Habeas corpus é a contraposição “Poder do Estado x Direitos do mais débil”. Afinal, ninguém pensou, na Inglaterra antiga, em criar um remédio a favor do Estado para corrigir eventual erro na concessão de habeas corpus. Por quê? Porque é da essência do habeas corpus a busca da liberdade. Erros eventuais na concessão fazem parte dos ônus e bônus do rule of law.
Ademais, não esqueçamos as lições da história. Falo do caso Marbury v. Madison. A Constituição dos EUA especificou que a Suprema Corte é um órgão recursal. Consequentemente, a US Supreme Court disse ser inconstitucional uma lei ordinária estabelecer que cabia a ela decidir “mandados de segurança”, por exemplo. Isso se chama rigidez constitucional.
O que isso tem a ver com o caso sob comento? Tudo. A Constituição do Brasil, no art. 105, II, I, estabelece que cabe ao STJ julgar recursos ordinários de decisões concessivas de habeas corpus. E ponto. Recurso Especial tem outra função. Se coubesse REsp de medida concessiva de habeas corpus estar-se-ia emendando a Constituição por vias indevidas. Os norte-americanos sabiam disso já em 1803.
E não se diga que “o que não está proibido, está permitido”. Estamos, aqui, em um jogo de linguagem (lembrando Wittgenstein) no qual as regras estão dadas e não precisam estar em um outdoor. Simplesmente nos movemos nessa linguagem.
Há um acórdão do STJ que diz que a CF não proíbe que se use o REsp ou RE contra decisão que concede HC. Permito-me discordar. A CF também não proíbe que se use REsp contra decisão que indefere HC. Ela fala em recurso ordinário. E assim por diante. Podemos usar Reclamação contra decisão não concessiva de HC, mais rápido e eficiente do que um RHC? Enfim, o que quero dizer é que há diferenças entre remédios a favor da liberdade e aqueles contra a liberdade ou abusos e equívocos na interpretação da lei.
Em termos de liberdades, não me parece um argumento constitucionalmente adequado dizer que o que não está proibido está permitido e isso ser interpretado contra o réu.
Numa palavra, dir-se-á que há habeas e habeas. Por exemplo, um HC concedendo a liberdade seria diferente de um HC que tranca ação penal. Uma tese intermediária poderia dizer que somente caberia REsp e RE nos casos de HC que trancam ação penal. Não é o meu caso.
De todo modo, precisamos falar sobre isso. Se menos de 1% dos REsps são admitidos, isso quer dizer que decisões erradas, teratológicas, que deveriam ser corrigidas em Brasília somente não o são porque houve problemas de admissibilidade (falta de prequestionamento, Súmula 7, etc). E essas decisões fazem coisa julgada no sistema, mesmo que não sejam concessivas de HC. Do mesmo modo que eventuais decisões concessivas de HC podem fazer coisa julgada. É da essência do HC ser interpretado como in dubio pro status libertatis. “Passar” um REsp hoje é tarefa hercúlea. E, se existe a afirmação de que a jurisprudência defensiva faz parte do jogo, uma vez que STJ não é instância revisora, então o mesmo argumento deve valer em relação ao HC.
Pois é exatamente por isso que decisão concessiva de HC, seja de que tipo for, não enseja REsp ou RE. Faz parte do “risco democrático” o sistema produzir decisões das quais não caibam recurso se forem a favor do réu — questão que os gregos nos ensinaram (e pouco aprendemos) desde a Oresteia.
Talvez devêssemos nos preocupar mais com decisões erradas contra o réu — e essas não faltam. E, pelas estatísticas, se somente 1% “passa” pelo filtro e considerando, por baixo, que 50% das decisões contra o réu sejam equivocadas, ao serem inadmitidos os REsps e REs temos todo esse contingente tendo que conviver com as injustiças.
Se a Constituição estabeleceu que de decisão não concessiva de habeas corpus cabe RHC e nada falou sobre a decisão contrária, é porque aqui temos uma interpretação histórica negativa. Silêncio eloquente quer dizer grito de liberdade. No Habeas Corpus Act, de 1679, pensou-se nos casos em que se precisava “trazer o corpo” e não no que fazer nos casos em que, trazido o corpo, o juiz errou. Por isso “habeas corpus”. A palavra “corpus” faz todo o sentido.
Ou seja, se falamos de habeas corpus, estamos falando de remédio contra o poder do Estado. Jamais em remédios a favor do poder estatal. E isso não diminui em nada o papel do Ministério Público. Ao contrário. Dá-lhe ainda maiores responsabilidades no papel de fiscal da lei. Aliás, ele mesmo não está impedido de ingressar com habeas corpus a favor do réu. Afinal, ele é o guardião também das liberdades, pois não?
De todo modo, a decisão da ministra Laurita Vaz que deu azo a esta reflexão deve servir para uma ampla discussão da matéria. Como se vê, efetivamente o Direito é um fenômeno complexo.
1 AgRg nos EDcl no Agravo em RESP 1.455.714 e os Recursos Especiais 1.182.985, 1.187.339, 1.001.961 e 60.941.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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