Tive o privilégio de em nome do Conselho Federal da OAB saudar o ministro Gilmar Mendes por ocasião do seu primeiro ano na Presidência do STF (Supremo Tribunal Federal) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Já se passaram mais de dez anos. Duas coisas me vêm à memória: sua atuação decisiva no ataque à miserável situação do sistema carcerário brasileiro, inclusive com a quebra do paradigma de que este era um problema exclusivo do Executivo e não do Judiciário; ele lembrou que quem prende e quem solta são os juízes, mostrou também que se prende muito provisoriamente e mal. Foi além ao constatar casos de presos abandonados e até com penas vencidas. Desenvolveu o maior programa de direitos humanos que o país conheceu na questão do encarceramento. A segunda lembrança tem a ver com sua coragem. Enfrentou nesses 20 anos de judicatura no STF, como poucos, uma estrutura autoritária na forma de investigar e processar, marcada pelo profundo desrespeito ao devido processo legal.
Para lembrar, quando ele “ousou” contrastar a ordem de um juiz federal de primeiro grau, que havia determinado a prisão de um certo banqueiro, foi alvo de toda a sorte de ataques. O juiz, quem sabe encorajado pelo apoio da imprensa, mesmo depois da ordem de soltura vinda do STF, expediu uma nova ordem de prisão contra o banqueiro.
Havia uma espécie de perversidade no aplauso à prisão de alguém do mercado financeiro, branco e abastado. Tudo o que sempre se criticou em relação a práticas autoritárias e obtusas que recaiam sobre pretos e pobres, parecia esquecido e, pior, validado por uma espécie de realização da “hora e a vez da burguesia na cadeia”. Para os que imaginam ser esse um modo democrático de realização da Justiça, isso, não custa lembrar, realiza o ideal nazista, segundo o qual “direito é aquilo que é útil aos interesses do povo” (Gilmar Mendes, Folha de S.Paulo, 24/10/93). Não por acaso se tem insistido que o combate à criminalidade deve ser feito dentro dos marcos da legislação e com a rigorosa observância do devido processo legal. Do contrário, campeará o autoritarismo de quem se julga intérprete dos “interesses do povo”.
O então presidente do STF não titubeou e, novamente, contra a opinião pública, determinou a expedição do alvará de soltura em favor do banqueiro. Pagou um alto preço por isso. Idem, quando, mais recentemente, puxou a votação pelo reconhecimento da parcialidade do juiz Sérgio Moro no caso Lula (HC nº 164.493, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 04/6/2021), ou, revendo seu posicionamento anterior, reconheceu o direito de o condenado permanecer em liberdade, ressalvados os casos de prisão preventiva, até o trânsito em julgado (ADCs, nº 43, 44 e 54).
Mas, voltando ao passado, logo após concessão da primeira liminar no caso da operação navalha, determinando a revogação da prisão temporária de um dos implicados, o então presidente do Supremo foi alvo de um covarde e sórdido ataque: um vazamento dava-o como envolvido no caso. Custa a acreditar que até agora, como denunciou o ministro, não se tenha feito nada para apurar a responsabilidade pelo ocorrido. Na linha do absurdo, o titular da pasta da Justiça de então afirmou que “os advogados” eram responsáveis pelo vazamento. Sim, descontentes com a concessão da medida pleiteada, puseram-se a detratar seu prolator…
Colocando os pingos nos “is”, o ministro Gilmar Mendes, com a autoridade de que o cargo de presidente do STF lhe conferia, veio a público e disse que a exibição de pessoas algemadas como troféus em uma ação simbolicamente punitiva contra meros suspeitos; vazamentos de material incriminatório cobertos pelo sigilo, mas que legitimam as operações da Polícia Federal; escracho público e prisões temporárias decretadas a granel para o fim de se ouvir o suspeito, representam um desrespeito ao Estado de Direito, cuja nota característica é exatamente a observância dos direitos e garantias fundamentais. Indo além, disse que isso tudo só se verifica em um Estado de Polícia e, pior, que o procedimento da PF é coisa de gângster.
No julgamento do HC nº 91.386, concedido no caso da operação navalha para revogar a prisão preventiva de um dos investigados, o ministro Gilmar Mendes, em página de ouro da jurisprudência do STF, advertiu para que “a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária”. Em outra passagem, realçou que a escorreita aplicação das garantias constitucionais “é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie”[1]. Nessa linha, concluiu lembrando o escólio de Claus Roxin, para quem “o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental”[2].
Seu trabalho, heroico e incansável, no fortalecimento do Habeas Corpus como remédio em prol dos direitos fundamentais de caráter judicial (Justizgrundrechte[3]) e em defesa da legalidade é admirável, primoroso e constitui referência em estudos acadêmicos para sua evolução.
A crítica à limitação do Habeas Corpus é central nos seus votos em matéria criminal. Assim, para lembrar outro julgado, no HC nº 105.566, o ministro Gilmar Mendes trouxe a colação o voto proferido no HC nº 111.670, no qual sustentou o cabimento do Habeas Corpus substitutivo do recurso ordinário, nos seguintes termos:
Como já tive a oportunidade de me manifestar, não olvido as legítimas razões que alimentam a preocupação com o alargamento das hipóteses de cabimento do habeas corpus e, com efeito, as distorções que dele decorrem. Contudo, incomoda-me mais, ante os fatos históricos, restringir seu espectro de tutela.
O valor fundamental da liberdade, que constitui o lastro principiológico do sistema normativo penal, sobrepõe-se a qualquer regra processual cujos efeitos práticos e específicos venham a anular o pleno exercício de direitos fundamentais pelo indivíduo. Ao Supremo Tribunal Federal, como guardião das liberdades fundamentais asseguradas pela Constituição, cabe adotar soluções que, traduzindo as especificidades de cada caso concreto, visem reparar as ilegalidades perpetradas por decisões que, em estrito respeito a normas processuais, acabem criando estados de desvalor constitucional[4].
No HC nº 121.419, julgado pela 2ª Turma em 2/9/2014, o ministro voltou a manifestar sua contrariedade e preocupação com as teses pela limitação do Habeas Corpus.
Essa visão privilegiada do mundo, marcada pela necessidade de dotar a cidadania de um instrumento eficaz contra o arbítrio dos agentes estatais, é que o levou a conceder a ordem para reconhecer a parcialidade do juiz Moro no memorável HC nº 164.493. Idem, se pensarmos sua atuação na defesa do Habeas Corpus coletivo, quando extinguiu monocraticamente a ADPF nº 758, que se voltava contra esse importante instituto.
Por outro lado, o Partido dos Trabalhadores ajuizou a ADPF nº 395 discutindo a incompatibilidade parcial da regra prevista no artigo 260 do CPP com o direito de não ser compelido a fazer prova contra si mesmo (artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição). A liminar foi deferida monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes por entender violado o direito à liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade (j. em 18/12/2017; DJe 1/2/2018). Esta ação, posteriormente, foi julgada procedente por maioria pelo Pleno do STF[5] e com isso, novamente, se coibiu uma forma autoritária de se investigar.
É tão marcante a atuação do ministro Gilmar Mendes no campo da proteção às liberdades que seria fastidioso para mim e para o leitor marcar todos os casos em que ele proferiu significativos votos, inclusive contrastando a “lava jato”, especialmente no campo descontrolado das delações, utilizadas a rodo e muitas vezes de forma isolada para condenar. Foi, a propósito, no pioneiro HC nº 142.205, aliás, impetrado pelo grande advogado Rodrigo Sanchez Rios, que se modificou a jurisprudência do STF para assinalar a possibilidade de terceiros atingidos pela delação poderem impugnar o acordo de colaboração premiada[6]. Mas não foi diferente no combate a prisões indevidas e motivadas de forma inidônea, como se viu no julgamento do AgRg no HC nº 152.676, realçando que em um “processo penal orientado pelos preceitos democráticos e em conformidade com as disposições constitucionais, não se pode aceitar que a liberdade seja restringida sem a devida fundamentação em elementos concretos”[7].
Não foi por acaso que no encerramento da gestão do ministro Gilmar Mendes na presidência do STF, em 2010, o ministro Celso de Mello disse que seu trabalho foi essencial para o “fortalecimento das instituições democráticas”. Passados 12 anos só nos resta repetir as palavras do antigo decano do STF. Por isso mesmo, reitero o que disse em 2008, ou 2009, da tribuna do STF, repetindo a conhecida frase de Churchill, no sentido de que “nunca tantos deveram tanto a tão poucos” na defesa da liberdade e das instituições, como ao ministro Gilmar Mendes, cuja presença no STF não é apenas motivo de orgulho, mas motivo de tranquilidade, segurança e esperança de um Brasil mais justo e fraterno! Que o Altíssimo o ilumine sempre!
[1] STF; 2ª T.; j. em 11/03/2008; DJe 15/05/2008.
[2] Idem.
[3] Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 587.
[4] DJe 19/03/2015.
[5] DJe 22/5/2019.
[6] DJe 1º/10/2020.
[7] DJe 03/8/2020.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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