Por Alberto Zacharias Toron e Renato Marques Martins
“A forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade”
(Rosa Weber lembrando Rudolf von Jhering no julgamento do HC 187035-SP)
Deu-se numa comarca do interior de São Paulo que a juíza, ao iniciar a inquirição de uma testemunha, foi interrompida com um “pela ordem” vindo do advogado de um dos réus. Ele, nos termos do artigo 212 do Código de Processo Penal, protestou afirmando que caberia às partes começar a inquirição. A juíza, invocando o prestigioso, mas minoritário, escólio de Guilherme Nucci [1], repeliu o protesto da defesa e sem mais perda de tempo passou a inquirir. Houve nova interrupção e um pequeno bate-boca. A juíza, encerrando a conversa, lembrou que “quem manda aqui sou eu“. Todos conhecemos esse lamentável tipo de arbítrio, mas há remédio.
A despeito do protesto “a tempo e modo”, a audiência seguiu e o TJ-SP, questionado pela via de Habeas Corpus, denegou a ordem. O STJ, em decisão monocrática, à mingua da demonstração do prejuízo, idem. O tema, então, foi levado ao STF, mas por se tratar de Habeas contra decisão monocrática, a despeito de haver o conhecido precedente da lavra do ministro Luiz Fux (HC nº 111.815, DJe 14/2/2018), a 1ª Turma não conheceu a ordem por três votos a dois, vencidos os ministros Marco Aurélio e Rosa Weber, que a concediam (HC nº 175.048, DJe 18/8/2020). O relator para o acórdão, ministro Alexandre de Moraes, embora tivesse oposto o óbice da impossibilidade de se conhecer de Habeas contra decisão monocrática de ministro do STJ, ingressou fundo no mérito para fazer uma espécie de “denegação de ofício” e, novamente, invocou o ensinamento de Guilherme Nucci, para quem:
“(…) Há de se ressaltar o seguinte: foi alterado, apenas, o sistema de inquirição feito pelas partes. Nada mais. O juiz, como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação, de defesa ou do juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem. Primeiramente, a acusação repergunta às suas testemunhas, para, na sequência fazer o mesmo a defesa. Em segunda fase, a defesa repergunta diretamente às suas testemunhas para, depois, fazer o mesmo a acusação” (“Manual de processo penal e execução penal”, 6ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 473).
Depois, sustentou que a nulidade, se houvesse, seria relativa e não ficou demonstrada.
A doutrina amplamente majoritária vai no sentido oposto ao do fixado no acórdão em exame. Para não nos alongarmos, basta a esclarecedora lição de Antonio Magalhães Gomes Filho:
“(…) O legislador não adotou um procedimento uniforme para a inquirição de testemunhas na instrução criminal comum, regulada pela Lei 11.690/2008, e na instrução no plenário do Júri, com as alterações da Lei 11.689/2008. Neste manteve-se o sistema anterior do Código, em que o juiz-presidente formula as perguntas iniciais, após o que as partes podem fazer a inquirição direta e cruzada (artigo 473, CPP, com nova redação).
De modo diverso, no artigo 212 é estabelecida outra ordem, em que as perguntas são desde logo formuladas diretamente pelas partes. A intervenção do juiz vem prevista a seguir, no parágrafo único do mencionado artigo 212: ‘Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição'” (“Código de Processo Penal comentado”. Coord., Antonio Magalhães Gomes Filho, Alberto Zacharias Toron, Gustavo Henrique Badaró. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 547).
Na mesmíssima linha vão as lições doutrinárias de Aury Lopes Jr. (“Direito Processual Penal”, 18ª edição São Paulo: Saraiva, 2018, p. 458. Gustavo Badaró, “Processo Penal”. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 470 e, entre outros, de Eugenio Pacelli e Douglas Fischer, “Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência”. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 417).
Não conhecida a ordem no STF, pois o voto do ministro Luiz Fux, sem entrar no mérito, fora nesse sentido, não restou alternativa à defesa se não a de impetrar novo writ no STJ (HC 578.934) e aguardar sua denegação colegiada para aí, então, voltar ao STF.
No Supremo Tribunal, o parecer da Procuradoria-Geral da República no novo Habeas foi pelo não conhecimento da ordem (HC nº 187.035, j. em 6/4/2021). Dizia-se que o novo writ seria “mera reiteração” do anterior e teria sobrevindo sentença na ação penal, tudo a impedir, outra vez, o conhecimento do Habeas. De resto, sendo a nulidade relativa e inexistindo “efetivo prejuízo”, o caso seria de denegação da ordem.
Todavia, ao julgar a ordem, a 1ª Turma rejeitou a proposta de não conhecimento da impetração por entender que a nova impetração, além de trazer elementos relativos à demonstração do prejuízo, voltava-se contra um novo título judicial e, de outro lado, a anterior denegação da ordem não faz coisa julgada de modo a impedir a nova impetração e o seu conhecimento; esse, aliás, o incisivo pronunciamento de Guilherme Nucci no seu Habeas Corpus (Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 166). De outro lado, o fato de haver sido prolatada a sentença não pode impedir o conhecimento da nulidade, desde que esta tenha sido arguida antes da sua prolação. A demora nos julgamentos dos Habeas Corpus não pode ser debitada à defesa e nem impedir o conhecimento de eventual nulidade, que, ademais, não se convalida com a prolação da sentença.
Superada a questão do conhecimento, a 1ª Turma, por três votos a dois, concedeu a ordem firmando o entendimento de que o novo regramento instituído pela reforma de 2008 não deixa dúvida no sentido de que o juiz apenas perguntará supletivamente e após as partes.
Por fim, não pode ficar sem registro a dificuldade em se demonstrar o “efetivo prejuízo” quando se trata de clara afronta ao comando legal e, consequentemente, ofensa ao devido processo legal. É uma “prova diabólica” como lembrou a ministra Carmén Lúcia ao votar no HC nº 157.627, em que se discutia a nulidade da ação penal por ofensa ao contraditório decorrente da impossibilidade de a defesa do delatado se manifestar em memoriais após os delatores, ou, como preferiu a ministra Rosa Weber no HC nº 144.887/MT, o prejuízo é presumido:
“(…) A complexidade da teoria das nulidades no processo em geral e, em particular, no processo penal, relativamente à qual não há consenso na doutrina e na jurisprudência, compreendo que, na hipótese de afronta a princípios de extração constitucional — caso dos autos em que em jogo as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal —, a nulidade é absoluta, o que significa dizer que não há preclusão, o vício pode ser suscitado de ofício e, embora não prescinda da ocorrência de prejuízo para sua decretação, o prejuízo é presumido. A presunção não é juris et de jure, e sim juris tantum, produzindo a inversão do encargo probatório”.
O tema do prejuízo é um tipo de válvula de escape para se evitar o reconhecimento de nulidades. Como diz Luciano Feldens, é uma espécie de “prova impossível” (“O direito de defesa”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 186). Ao julgar o HC nº 73.338 no acórdão lavrado pelo ministro Celso de Mello, o STF registrou que a “persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido ___ e assim deve ser visto ___ como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal não é um instrumento de arbítrio do Estado” [2].
Vale dizer, o respeito às formas do processo representa uma exigência indeclinável para o cumprimento do devido processo legal, extirpando-se o arbítrio. No dizer de Cezar Peluso, a tradução perfeita da expressão due process of law é “o justo processo da lei”, tal como preceitua a Constituição italiana no artigo 111, primeira parte, “la giuridizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge” [3].
[1] Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 523, item 69-A.
[2] 1ª T., DJ 19/12/1996.
[3] Constituição brasileira revela amplitude da presunção de inocência, in: www.conjur.com.br, visto em 27/9/2016. Este trabalho é a segunda parte da Conferência proferida no VI Encontro da Associação dos Advogados de São Paulo.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *