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O revogaço das armas à luz da teoria do direito adquirido

O revogaço das armas à luz da teoria do direito adquirido

Por Rodrigo Portella Guimarães

Ainda com poucos holofotes, o trabalho em curso na transição das pastas da Justiça e Segurança Pública demarca um enfrentamento direto aos temas mais caros ao núcleo duro bolsonarista. Capitaneado pelo Senador Flávio Dino, o grupo de excelência debate e busca alternativas que visam garantir desde a reconstrução do aparato institucional do Estado Democrático de Direito, que envolvem, inclusive, a proposta de divisão ministerial, novas matrizes para a Lei de Drogas e a fundamental discussão acerca da atual política de armas, tema este eivado à prioridade máxima pelo grupo, e que será o foco deste escrito. 

Se houve alguma promessa de campanha cumprida pelo futuro ex-presidente esta diz respeito à flexibilização ampla das regulações ao acesso às armas. Do ponto de vista narrativo, sabe-se que esta proposta visava agradar aos eleitores que, partindo-se do senso comum acerca da segurança pública, consolidado pelo binômio repressão-prisão, carregam consigo a falsa sensação de ampliação da proteção pessoal com o porte destes equipamentos. Do ponto de vista prático, esta política concede acesso aos armamentos a um pequeno – mas crescente – grupo de pessoas (em espaço rural e urbano), levando-se em conta o elevado custo destes objetos, e é ao mesmo tempo, eficaz ao aumento de lucratividade das indústrias de armas, cujo lobby é globalmente conhecido, bem como, ao previsível objetivo da construção de milícias políticas privadas estabelecidas ao projeto golpista do atual presidente. 

Do ponto de vista estritamente jurídico, o atual governo se utilizou, nos termos trazidos pelo Instituto Sou da Paz, de mais de 40 normatizações, que se dividem em decretos, portarias, instruções normativas e resoluções cujo escopo era o de flexibilizar o estatuto do desarmamento. Em outras palavras, o governo Bolsonaro usurpou a supremacia de uma lei, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio de documentos jurídicos de força menor. Isto é, no atual ordenamento jurídico brasileiro, a figura dos Decreto-Lei são letras mortas e, ao presidente, cumpre a construção, apenas, dos Decretos e Portarias, cuja natureza jurídica é a de ato administrativo, hierarquicamente inferiores, voltados à construir a regulamentação das leis, no sentido do seu cumprimento efetivo e não, da sua contradição, com fulcro no art. 84 da CR/88. Nestes termos, uma primeira questão decisiva acerca do debate é a da possibilidade da supressão destas mudanças executadas. De forma sintética, estes diversos documentos jurídicos, com destaque para o Decreto  nº 9.847, de 25 de junho de 2019, alterado pelo Decreto nº 10.630, de 12 de fevereiro de 2021, promoveram uma flexibilização na posse e no porte de armas, indo além da natureza legal essencialmente restritiva originária do estatuto legal. Para tanto, ganhou destaque a figura jurídica dos CAC´s (colecionador, atirador e caçador) que, de acordo com a Lei de Acesso à Informação, triplicaram, em números absolutos, no regimento do atual governo. Dentro disso, apenas à título de exemplo, percebe-se que estes decretos não visam regular a lei posta, mas sim, superá-la, a exemplo da garantia do porte de arma ao CAC (ainda que, apenas, em trânsito ao seu clube), previsão esta completamente inexistente no art. 6º do estatuto. Vale dispor que o Supremo Tribunal Federal, já atento a esta situação, por meio das Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIs) 6139, 6466 e 6119 vem concedendo, tanto de forma liminar, quanto de forma definitiva, a suspensão de trechos relevantes destes decretos e, de tal sorte, modulando a quantidade de armamento, bem como, do porte e posse deste, a fim de preservar a natureza original do Estatuto. Contudo, como já identificado pela equipe de transição, a perversidade destes exige a sua integral descontinuidade, visto que frontalmente ilegais e paralelos à previsão jurídica de referência. E, diante disso, essa extinção proposta enfrenta uma questão de centro: o caminho mais adequado seria o pleito da revogação ou da anulação dos atos administrativos? Trazendo ao escrito as insuperáveis lições de Heli Lopes Meirelles e de Celso Antônio Bandeira de Mello está-se diante, aqui, de um caso expresso de anulação de atos administrativos. Isto, pois, enquanto a Revogação diz respeito a um cenário discricionário de um juízo de adequação de determinado ato legítimo e eficaz, associada aos fins específicos da administração, a Anulação é a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário, partindo-se, pois, de razões de legitimidade ou legalidade, diversamente da que se funda em motivos de conveniência ou oportunidade, e por isso mesmo é privativa da Administração. Em outras palavras, significa a invalidade substancial e insanável por infringência clara ou dissimulada das normas e princípios legais que regem a atividade do Poder Público.Diante do cenário colocado, este acúmulo de decretos, resoluções, portarias e instruções normativas afrontam o direito vigente, ao buscar reformular o sentido geral e específico do Estatuto, a partir de instrumentos jurídicos que não possuem a força e a hierarquia para tal, afrontando-se, pois, o ordenamento jurídico vigente. Nestes termos, é inequívoca, pois, que a medida a ser adotada é a da Anulação destes atos administrativos, com fulcro nos arts. 53 a 55 da Lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999, que poderão ser executadas pela própria administração. Superada esta questão, abre-se luz a uma outra, que tende a ser politicamente mais delicada. Afinal, estes atos administrativos concederam direito adquirido aos seus beneficiários? Para tanto, diante das conclusões deste escrito, para o devido trato desta questão, deve-se levar em conta a Súmula 473 do STF. Em suas considerações, a corte suprema brasileira compreende que dos atos administrativos anulados não se originam direitos. Ou, em outras palavras, reconhecida e declarada a nulidade do ato, pela Administração ou pelo Judiciário, o pronunciamento de invalidade opera ex tunc, desfazendo todos os vínculos entre as partes e obrigando-as à reposição das coisas no status quo ante, como conseqüência natural e lógica da decisão anulatória. Portanto, uma vez anulados estes institutos, do ponto de vista jurídico, não há direito adquirido ao porte e posse destes armamentos. Todavia, ainda que a situação jurídica vislumbre um caminho relativamente fácil, inclusive pela correlação de forças exigida, os efeitos políticos e sociais desta determinação não serão simples. Exemplo inicial disto é apontado, por exemplo, pela completa ineficiência do sistema fiscalizatório dos CAC´s. O Exército, órgão responsável por esta função, afirmou, de maneira expressa, que não sabe, por exemplo, quantas armas dispõe os CAC´s pelas cidades brasileiras, por falta de estrutura para realizar tal levantamento. De maneira semelhante, comportou-se a Polícia Federal ao ser questionada sobre o porte e posse de armas aos civis. Portanto, o único diagnóstico plausível é o de que não se é possível operar, de modo exato e completo, os efeitos desta anulação, sobretudo, sem que incentivos sejam construídos.

Para além disso, dois outros desafios terão que ser enfrentados e ponderados. O primeiro deles diz respeito à reação, orgânica ou orquestrada, dos grupos mais radicalizados dos defensores de armas, em face destas anulações. O outro será promover o controle do lobby da indústria armamentista que, por motivos egoístas, não gostaria de ver sua taxa de lucratividade decair. 

Diante disso, julgo, em um primeiro momento, que a transição deverá propor a anulação destes atos administrativos, decaindo qualquer direito adquirido associado, pois é medida urgente e necessária a restauração do controle do porte e posse de armas, seja por civis ou por CAC´s (cujo título vem sendo concedido, inclusive, a membros de organizações criminosas. Uma vez anulados tais atos, retoma-se ao cenário jurídico anterior. Contudo, dado o volume de novos portadores e possuidores (que, como se sabe, cresceram de forma exponencial, mas sem um devido controle, apenas estimado) deve-se ser criado um programa de incentivo à devolução do material excedente, a partir de incentivos fiscais ou pagamento direto, associado ao reforço da fiscalização, a partir de um chamamento universal dos registrados, que deverão indicar a documentação pertinente, bem como, a quantidade exata de armamentos que possui, sob risco da perda do registro e outros efeitos.

A política de armas, assim como a de outros setores desta transição, deve, neste primeiro momento, respeitar uma tentativa de adequação ao status quo, para que, em um segundo momento, com maior estabilização, seja enfrentada de maneira propositiva e com um cunho reformador. Todavia, este cenário de incerteza, ilegalidade e profunda flexibilização normativa deve ser decisivamente enfrentado. 

Artigo publicado originalmente no Brasil 247.

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