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O uso do aparato do Estado para perseguir opositores como ato de improbidade, por Kakay e Susana Botár

O uso do aparato do Estado para perseguir opositores como ato de improbidade, por Kakay e Susana Botár

Por Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay e Susana Botár

Em meio à pandemia que assola o país, o aparato estatal foi mobilizado no dia 15 de março para intimar o youtuber Felipe Neto a depor em delegacia. A razão? Chamar o presidente de “genocida” nas redes sociais, num contexto de consenso quanto à sua caótica condução da crise da Covid-19 no Brasil. O delegado responsável, em claro abuso de poder, dada a flagrante incompetência da Polícia Civil para investigar matéria criminal de competência federal e, ainda, por provocação ilegítima (e também abusiva) do vereador Carlos Bolsonaro, justificou que o influenciador digital poderia ter incorrido em crime tipificado na Lei de Segurança Nacional (LSN), por ofensa à autoridade presidencial, ou em crime contra a honra da pessoa de Jair Bolsonaro. Como não podia ser diferente, a Justiça do Rio de Janeiro determinou a suspensão da investigação por “(…) existência de flagrante ilegalidade praticada pela autoridade coatora, que não detém a necessária atribuição legal para investigar os fatos apurados, cuja apuração sequer poderia ter sido iniciada, por ausência de condição de procedibilidade”.

Neste mesmo dia 15 de março, tornou-se público outro caso similar: o atual advogado-Geral da União, então ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça — cuja pasta já havia sido proibida pelo STF em julho do ano passado de seguir com a inquisitória produção de dossiês sigilosos de servidores “antifascistas” —, solicitou à Polícia Federal a abertura de investigação contra um sociólogo de Palmas para a apuração de crime também contra a segurança nacional. A razão desta vez? A instalação de dois outdoors que comparavam Bolsonaro a um “pequi roído”. Em abril deste ano, o Ministério Público Federal decidiu pelo arquivamento do inquérito por entender que “(…) nas declarações do investigado predominam a crítica à ação política governamental e não o intuito de ofender a honra alheia”.

Coincidentemente, também num dia 15 de março, porém há 31 anos, encerrava-se o mandato do último presidente militar, João Figueiredo. Passadas mais de três décadas desde aquela data, perguntamo-nos: será que fechamos de vez a porta do passado regime autoritário? Ao que parece, ainda não. Segundo levantamento do Estadão, realizado por meio da Lei de Acesso à Informação [1], no governo de Jair Bolsonaro houve um aumento de 285% de procedimentos abertos pela Polícia Federal com base na LSN, quando em comparação às gestões de Dilma e Temer. Não à toa, partidos políticos questionam agora a lei por meio de arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e, mais recentemente, a Defensoria Pública da União impetrou Habeas Corpus coletivo para que seja concedido “salvo conduto às pessoas que estiverem promovendo pacificamente manifestação da opinião política, impedindo quaisquer medidas de coerção fundamentadas na Lei de Segurança Nacional”. Nesses autos, o ministro Gilmar Mendes deferiu, nesta segunda-feira (5/4), o prazo de dez dias para que o Ministério da Justiça e as polícias envolvidas prestem esclarecimentos sobre os procedimentos investigatórios instaurados.

A realidade é que a LSN, verdadeiro “entulho da ditadura”, como tem sido chamada, ou “herança tóxica”, nas falas de Lenio Streck [2], já há muito deveria ter sido substituída por lei voltada à real proteção das instituições democráticas, sendo difícil de se imaginar em que contexto, senão o de um regime autoritário, críticas ao presidente poderiam configurar um efetivo risco à segurança do país.

Lei maior do Direito brasileiro, a Constituição de 1988 restaurou e ampliou garantias democráticas antes silenciadas ou suprimidas pelo regime militar, de modo que é um desatino (para ora poupar adjetivos) a utilização de instrumentos infraconstitucionais para a repetição daquelas mesmas violações que ela visou a combater, tais como a de perseguição de opositores políticos. Lembre-se que a Constituição Cidadã, como ficou conhecida, foi promulgada na efervescente Assembleia Nacional Constituinte, em 5 de outubro de 1988, em forte reação aos anos de repressão, como ficou notório no discurso de Ulysses Guimarães: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (…)”, fala tão lembrada no último dia 31 de março.

Para além desse verdadeiro ultraje ao espírito da Constituição, a reciclagem de leis da ditadura para a perseguição de desafetos políticos configura, como se demonstrará adiante, hipótese de desvio de finalidade ante a instrumentalização do aparato estatal para servir interesses pessoais. Trata-se de ato de improbidade administrativa, de modo que, sem prejuízo das possíveis implicações penais, tais agentes devem também responder na esfera civil-administrativa.

A Lei n° 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, sofreu nos últimos anos uma série de críticas por parte de juristas em razão de excessos na punição de gestores públicos. Ocorre que a norma é inegavelmente um importante instrumento jurídico, criado já sob a égide da CF/88, para coibir abusos não só no trato da coisa pública, mas também nas relações dos agentes com os administrados. E, como nos lembra Celso Antônio Bandeira de Mello [3], a regulação da ação dos governantes nas relações com os administrados deu origem, quando do advento do Estado de Direito, ao próprio Direito Administrativo, em que “(…) este último veio trazer, em antítese ao período histórico precedente — o do Estado de polícia —, justamente a disciplina do poder, sua contenção e a inauguração dos direitos dos, já agora, administrados — não mais súditos”, promovendo profunda subversão nas ideias políticas da época.

Reflexo desse paradigma no moderno Direito Administrativo brasileiro, a Lei n° 8.429/92, em seu artigo 4º [4], prevê que é defeso ao agente público se valer dos poderes que lhes são investidos pelo cargo ou função pública, para agir de forma que não aquela estrita aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. O descumprimento desse dever configura ato de improbidade, na forma do artigo 11, caput e incisos, dessa lei [5]. Em especial, o inciso I tipifica a hipótese de desvio de finalidade, em que o agente pratica “(…) ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

Também é o que prescreve a Lei da Ação Popular (n° 4.717/65) [6], e especificamente na alínea “e” do parágrafo único do artigo 2º, que traz conceituação mais próxima ao entendimento doutrinário de que a finalidade legal tem sentidos estritos (previstos especificamente na lei) e amplos (de interesse público em geral). Ao deixar de atender a qualquer um deles, o agente público incorrerá em desvio de poder, como explica Maria Zanella Di Pietro [7]. Em termos práticos, é preciso que o agente observe tanto a finalidade específica da lei, quanto à finalidade geral de interesse público, caso contrário, incorre em desvio de poder (ou finalidade).

Diante disso, ainda que a Lei de Segurança Nacional (cuja não recepção pela CF/88, ao menos em boa parte, nos parece flagrante) seja invocada para a finalidade específica de punir aqueles que ofendem a honra do presidente (artigo 26), é igualmente imperativo, sob pena de incorrer em flagrante desvio, que o agente público observe também a finalidade em sentido amplo, portanto, no caso, aquela de proteção à “segurança nacional”; bem jurídico esse que deve ser interpretado exclusivamente à luz dos preceitos democráticos da Constituição de 1988 e, por óbvio, não do revogado ordenamento do período de repressão.

Em verdade, essa concepção de que críticos às autoridades representam risco à vida em comum e, por isso, devem ser punidos, são mais retrógadas do que as leis dos regimes totalitários e ditatoriais do século 20, tais como a LSN. As revoluções burguesas dos séculos 17 e 18, que desaguaram no surgimento do Estado de Direito, já se insurgiam contra a perseguição daqueles que manifestavam ideias críticas aos regimes vigentes, a exemplo de John Locke, refugiado na Holanda por suas ideias liberais contrárias à monarquia absolutista inglesa, e de Voltaire, que chegou a ser preso e exilado por seus comentários ácidos à realeza francesa. Não à toa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa de 1789, prevê que “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”.

Trata-se de marco de avanço civilizatório por romper com a lógica estamental das sociedades pré-modernas e estabelecer que os indivíduos, uma vez livres e iguais, podem manifestar livremente o seu pensamento, inclusive em crítica aos governantes, porquanto esses não estão em patamar superior aos demais cidadãos. É claro que o exercício desse direito, mesmo já naquela época, como se denota da declaração [8], deve ser exercido dentro de certos limites, pois, como bem compreenderam os pensadores modernos, direitos absolutos só cabem em estados tirânicos. Dado que o Direito não pertence ao campo das ciências exatas, a avaliação de eventuais excessos dependerá sempre das circunstâncias do caso concreto.

De volta aos tempos hodiernos, ao tratar de conflitos entre a liberdade de expressão e à honra dos indivíduos, a legislação e a jurisprudência pátria e internacional dispensam tratamento diferente às figuras públicas, em especial àquelas que exercem atividades de gerência estatal, cujo direito à honra deve ser mitigado frente ao legítimo direito de crítica pela imprensa e pelos cidadãos em geral (afinal, lembre-se que, ao menos desde a tradição aristotélica, tratamento isonômico significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades). Nesses casos em que a opinião se correlaciona à gestão dos interesses da coletividade pelo agente público, os tribunais, incluindo nesse rol o Supremo Tribunal Federal, são uníssonos quanto à preponderância da liberdade de expressão, mesmo em casos de manifestações duras, severas ou impiedosas, e “(…) contra quaisquer pessoas ou autoridades” (Pet 3.486/DF, relator ministro Celso de Mello), (em mais uma evidência de que ao menos boa parte dos crimes previstos na LSN não foram recepcionados pela CF/88).

É preciso, então, novamente se perguntar: em que contexto, senão o de um regime autoritário, críticas ao chefe do Poder Executivo poderiam representar efetivo risco à “segurança nacional” e, assim, exigir a atuação dura das autoridades? Sem adentrar nos pormenores das inúmeras críticas possíveis a esse conceito de segurança nacional, no atual Estado democrático de Direito, esse bem jurídico deve ser precipuamente interpretado como a proteção das instituições da democracia. E se a função pública “(…) é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” [9], tem-se que, para as hipóteses prescritas na LSN, as autoridades estão autorizadas a atuar apenas quando há a finalidade estrita de interesse público de proteção às instituições democráticas.

Nas condutas investigadas, é patente a ausência de mínimo risco à democracia (frisa-se: chamar o presidente de “pequi roído”), em explicitação do uso abusivo dos instrumentos jurídicos pelas autoridades em questão. Travestidas de aparente legalidade, tais objetivam, em verdade, intimidar cidadãos que criticam o presidente, em uso ilegal, imoral, impessoal e, portanto, ímprobo do aparato do Estado e dos poderes em que estão publicamente investidos. E, para além da finalidade autoritária, há evidência de que, ao se utilizarem de tais poderes, visam a auferir vantagens também para si, fazendo prevalecer o interesse individual sobre o público, na medida em que conquistam prestígio pessoal junto chefe do Poder Executivo pela prova de lealdade e subserviência por suas atuações.

Não há dúvidas de que os atos administrativos perpetrados pelo citado delegado e pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, bem como quaisquer outros que se desviem da estrita finalidade do interesse público de defesa das instituições democráticas, configuram desvios de poder. E, consoante prescreve o artigo 12, inciso III, da Lei n° 8.429/92, aquele incorre em ato de improbidade administrativa por desvio de finalidade está sujeito, entre outras penas, à perda função pública e à suspensão dos direitos políticos por três a cinco anos [10].

É dever dos órgãos de controle, das corregedorias competentes e do Ministério Público atuar para apurar o cometimento de eventuais atos de improbidade por desvio de finalidade, dada a instrumentalização do aparato estatal para a persecução de desafetos políticos e para a tutela de interesses privados, em flagrante ofensa aos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade da Administração Pública e às garantias democráticas prescritas na Constituição de 1988, de sorte a responsabilizar os agentes também no âmbito civil-administrativo, em especial pela Lei n° 8.429/92, sem prejuízo das demais sanções, inclusive penais, por abuso de autoridade, caso cabíveis.


[1] (https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,inqueritos-da-pf-com-base-na-lei-de-seguranca-nacional-crescem-285-no-governo-bolsonaro,70003652910> Acesso em 06.04.2021).

[2] (STRECK, Lenio Luiz; NEWTON, Eduardo Januário. LSN é pauta para historiadores e não objeto de trabalho da PF! In: Revista Consultor Jurídico, 28 de janeiro de 2021. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/senso-incomum-lsn-pauta-historiadores-nao-objeto-trabalho-pf> Acesso em 05.04.2021).

[3] (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 46).

[4] “Artigo 4° – Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos”.

[5] “Artigo 11 – Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”.

[6] “artigo 2º – São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: (…)
e) desvio de finalidade;
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
(…) e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

[7] Pode-se falar em fim ou finalidade em dois sentidos diferentes:

  1. em sentido amplo, a finalidade corresponde à consecução de um resultado de interesse público; nesse sentido, se diz que o ato administrativo tem que ter finalidade pública;
  2. em sentido restrito, finalidade é o resultado específico que cada ato deve produzir, conforme definido em lei; nesse sentido, se diz que a finalidade do ato administrativo é sempre a que decorre explícita ou implicitamente da lei.

Seja infringida a finalidade legal do ato (em sentido estrito), seja desatendido o seu fim de interesse público (sentido amplo), o ato será ilegal, por desvio de poder.

(DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 216)

[8] “Artigo 11º – A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, embora deva responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”.

[9] (BANDEIRA DE MELLO, 2015, p. 29).

[10] O artigo 132, inciso IV, Lei n. 8.112/1990, que rege os servidores públicos federais, prevê que atos de improbidade administrativa são passíveis de punição por demissão, pena essa igualmente aplicável, segundo o inciso XIII deste mesmo artigo, aos casos em que o servidor transgride a vedação do inciso IX, artigo 117 desta Lei, de “valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública”.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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