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Para que a primeira impressão não seja a que fique

Para que a primeira impressão não seja a que fique

Por André Nicolitt

O juiz que atua na fase do inquérito (decreta prisões, buscas, escutas telefônicas etc.) não pode participar do julgamento

O Supremo Tribunal Federal começará amanhã o julgamento sobre a constitucionalidade do “juiz das garantias”, que nada mais é do que um mecanismo de reforço à imparcialidade já há muito tempo aplicado em países democráticos. Embora instituído no Brasil apenas em 2019, com a Lei Anticrime, sua eficácia foi suspensa por liminar do ministro Luiz Fux.

A principal qualidade que um juiz pode conferir ao julgamento é a imparcialidade. Toda pessoa, caso seja julgada por algo, gostaria que o juiz não tivesse uma tendência por uma das versões em jogo, tampouco predileção por um dos lados.

A democracia brasileira sentiu na pele os problemas de um juiz tendencioso, interessado, enviesado e parcial, que acabou por pavimentar o caminho para um período autoritário. Isso vem sendo corrigido em parte, a partir de importantes decisões do STF. A imparcialidade do julgador é fundamental, não só para os aspectos individuais, mas igualmente para todo o sistema político e jurídico. Não se pode transigir e arriscar.

O juiz das garantias se impõe para que a primeira impressão não seja a que fique. Muitos são os fatores que influenciam a decisão do juiz. Ele não é uma máquina de fazer sentenças, absolutamente neutro, equidistante, apegado somente à lei. Não é um espectador impassível sem interferências em seu processo decisório. Por isso é necessário repensar as formas de garantir a imparcialidade.

Na Alemanha (Schünemann), a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva (psicologia social) se desenvolveu importante pesquisa de campo que confirma a vinculação psicológica do juiz ao inquérito, fase desprovida de contraditório e ampla defesa. A conclusão é que o contato do juiz com o inquérito policial faz com que ele tenda a não divergir da versão policial e lance mão de processos mentais, supervalorizando informações em harmonia com o inquérito e subvalorizando as provas que contrariam as informações policiais. O juiz condena mais frequentemente quando, antes do julgamento, toma conhecimento do inquérito policial. Atestou-se também que, nos julgamentos, o juiz comete mais erros quando conhece o inquérito previamente do que quando não dispõe desse conhecimento. Inversamente, os erros diminuem quando inexiste conhecimento prévio do inquérito pelo juiz.

A psicologia social fez importantes experimentos que permitiram identificar nas decisões o princípio da primazia: as primeiras informações apresentadas têm maior impacto na impressão final. No processo penal, as informações colhidas unilateralmente pela polícia produzem no juiz uma impressão que o impregnará até o final do julgamento. Testemunhos e teses da defesa, já ao final do processo, não terão o mesmo impacto sobre o imaginário do juiz, e a primeira impressão fica.

Num sistema como o nosso, fundado na presunção de inocência e na equidistância que o juiz deve manter entre acusação e defesa, não instituir o juiz das garantias significa romper com as bases constitucionais do processo penal.

O que a lei criou com o juiz das garantias? O juiz que atua na fase do inquérito (decreta prisões, buscas, escutas telefônicas etc.) não pode participar do julgamento. A estruturação desse sistema de separação de tarefas se dá por mera redistribuição de funções entre juízes já existentes, por meio de regras de organização judiciária, sem importar custo adicional para a Justiça.

A resistência ao instituto do juiz das garantias não tem base teórica, tampouco empírica. Trata-se de puro reflexo da tradição autoritária de nossa sociedade, que se reflete para as instituições do Estado. Esperamos que o STF reafirme a Constituição e impeça que pessoas sejam presas com base na “primeira impressão”.

Artigo publicado originalmente em O Globo.

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